Carolina
desceu o caminho de pedras que levava da enorme casa de campo para a casinha de
bonecas, que ficava nos fundos. Ela vinha nas pontas dos pés e com um braço
erguido, como se segurasse com um cigarro. A berrante construção de madeira
cor-de-rosa destacava-se dos tons de verde da floresta que circundava a
propriedade e do lago, a alguns metros, com sua superfície acinzentada quase
imaculada. A manhã estava nublada e fria.
- Mariana,
minha querida! Você não imagina como estava o trânsito. – Falava a menina de
forma afetada. Ao chegar na frente da casa, Carolina bateu na porta.
- Carol,
mas que surpresa! – Recebeu a amiga, com um copo de Martini de plástico cheio
de suco. Ela arrumou os cachos loiros com a outra mão e convidou a visita para
entrar.
Carolina
tinha seis anos e Mariana, cinco.
A menina
cumprimentou a anfitriã com um beijo em casa bochecha, retirou a bolsa de
lantejoulas e a pôs em uma estante abarrotada de ursinhos e brinquedos.
- Meus pais
mandaram um beijo. Eles estão lá em cima com... – Ao se virar, Carolina se
deparou com uma visão inusitada, sentada na mesinha de plástico lilás. Por um
segundo ela não soube o que pensar, voltando à suas feições e características
infantis. Era o tipo de pessoa que ela não esperava encontrar em um “evento
desse nível” (como falava sua mãe), e muito menos a sós com a amiga. Ela a estudou
com cautela, tomando cuidado para não demonstrar a surpresa e a decepção – que
estavam estampadas em seus olhos grandes e azuis. Ela esperava encontrar outras
primas e colegas de sua melhor amiga,
mas nunca um...
- Oi.
_disse o menino sorridente.
- Ah, esse
é o meu novo amigo. Essa é a Carol.
- Oi. – A
menina sentou-se do outro lado da mesa, e ficou observando o lago, pela
janelinha. A música abafada da casa de campo chegava até eles de vez em quando,
trazida pelo vento. Ela lançava olhares nervosos para a amiga, que colocava bolachas
e canapés em pratinhos roxos (combinando com seu avental cheio de pôneis) e
mexia nas panelas de brinquedo, e para o menino – que lhe parecia um tanto... Diferente.
Uma fina
neblina pairava sobre o lago, desfazendo-se à medida que o sol saía por detrás
das pesadas nuvens. A superfície da água parecia fundir-se com o vapor e o céu
cinza, no horizonte.
Carolina tirou
as luvas (roxas) e o cachecol xadrez, e reparou na blusa longa e escura que o
menino usava, de um tecido grosso e rústico (pobre). A gola lhe tampava o pescoço e quase alcançava seu queixo,
e um gorro preto.
-Tá com
frio? -Perguntou a garota.
O menino balançou
a cabeça, com o mesmo sorriso líneo.
-Tendi.
Ãhm... Seus pais também estão na festa do tio e da tia?
-Não. Eu
moro aqui perto, e daí resolvi vim brincar com vocês.
Sozinho? Pensou Carolina, mas sua amiga já vinha do
outro lado da pequena cabana, com os petiscos.
-Não é
legal? Eu queria morar aqui também! E não ter que voltar pra cidade, pra escola...
-Ah, escola
é uma droga! – comentou o menino, com a voz baixa, ao que as duas concordaram e
riram.
-Ele tava
me falando que morar por aqui é muito legal! Que ele e os amigos dele brincam o
dia todo na floresta! – Os olhos da menina cintilavam. – Meus pais nunca me deixam
ir na floresta, né Carol?...
-Ai, eu ia
morrer de medo! – disse Carolina, rindo.
-Que nada,
é super legal!
-Mari, olha
o meu novo celular. – Carolina retirou o IPhone do bolso. Ele é cheio de
joguinhos, tem internet...
-Eu pedi um
desses pra minha mãe, mas ela disse que eu sou muito nova pra ele, af! Você tem
iPhone?
-Um o que? –perguntou
o menino, observando o celular sobre a mesa. Ele olhava desconfiado para o
aparelho. -Ah, não, é meus pais também não me deixam ter um, af!
Carolina notou
o tom o desconforto do garoto, e tinha quase certeza que era a primeira vez que
ele dizia aquela gíria. Seu tom não era natural; era forçado, descabido – aliás,
como o próprio menino, que não parecia se encaixar naquela situação. Meninos... af!I Pensou a garota.
-Como você
se_
-E aí, a
gente vai brincar de quê? – o menino interrompeu Carolina, olhando ao redor da cabana.
-De casinha,
ué! Olha a comidinha!
-Ah, não
isso é coisa de menina! Vamos brincar de esconde-esconde, lá fora!
-Minha mãe
não deixa, eu só posso ficar aqui.
-Nem a
minha. – completou Carolina, desapontada.
-Ah, tá bom,
vai! – disse o menino, rindo.
Mariana então
se sentou, e as duas atacaram a comida.
-Coloca mais
suco pra gente? E coloca mais açúcar, que ele ainda está amargo, bléh! – Pediu Mariana,
fazendo uma careta. Ela foi até o fogão e pegou o smartphone. – Vou pedir pra minha mãe trazer refri.
O menino
descruzou os braços e despejou o suco de uva nos copos. Para o espanto de
Carolina, as pequeninas mãos dele eram curvas e enrugadas, com pelos negros sobre
os dedos e unhas amareladas. Ele então tirou um saquinho de pano do bolso e colocou
um pó branco nas duas taças, e as empurrou na direção das garotas. Carolina
olhou assustada para a amiga, que dava um imenso bocejo.
-Ai, sem
sinal! – E coçou os olhos.
Mariana
voltou para seu lugar e pôs-se a tagarelar sobre as aulas de balé, as
amiguinhas da escola, sobre as roupas que comprara e do cachorro que os pais
estavam enrolando para lhe dar, enquanto bebericava o suco. O menino ria baixinho,
e concordava com a cabeça. Carolina, porém, ficava cada vez mais tensa à medida
que uma sensação ruim crescia dentro de si. Ela não parava de mexer nos cabelos
pretos e longos, e sua respiração acelerava-se a cada gole da amiga – que não
percebia que estava começando a falar engraçado. Será que a tia sabe que ele está aqui com a gente? O coração dela
disparou, e a garota precisou segurar a vontade de chorar.
-Não vai beber
o suco, Carol? Agora tá docinho. – comentou Mariana.
-É, Carol,
bebe. – disse o menino, cujo sorriso desaparecera, deixando no lugar um rosto
magro e sulcado, esboçando o extremo oposto de sua voz suave. Os vincos que se
formaram dos lados da boca chamaram a atenção da garota, mas não mais que seus
olhos – negros e redondos, quase negros, com um brilho vítreo. Carolina então
desviou o olhar.
-Eu vou lá
pra cima, Mari.
- Ah,
espera! Tem o bolo. – Ao levantar-se, Mariana deu dois passos trôpegos, tentou
se segurar em uma cadeira, mas acabou desmaiando.
-Mari! –Carolina
ergueu-se com a voz embargada pelo medo, mas ele fora mais rápido. Com o
movimento, do bolso de seu casaco caiu um cachimbo de madeira.
Ao ver
Carolina acuada em um canto, arfando e com as expressões deformadas anunciando
o choro, o menino sorriu, mostrando os dentes podres.
-Se eu
fosse você, ficaria bem quietinha.
Quando ele
se abaixou para pegar o cachimbo, seu gorro enroscou em um gancho para casacos –
revelando uma lustrosa careca e um par de orelhas longas e pontiagudas.
Carolina
começou a chorar e a dizer coisas ininteligíveis, mas algumas frases se
formaram corretamente entre seus soluços.
-Deixa a
gente em paz... Eu quero a minha mãe... MÃE! – o grito finalmente irrompeu de
sua garganta.
Ele pulou o
corpo de Mariana e agarrou o pescoço da menina com os dedos grossos e ásperos.
Seu hálito era forte e pútrido, quente.
-Se não
quiser que eu te visite todas as noites, mocinha, é melhor não contar isso para
ninguém. Porque eu vou ficar sabendo. Eu vou.
Você não imagina como as notícias voam nessa floresta...
Petrificada,
a menina já não tinha certeza do que estava acontecendo. Muda, trêmula e sentindo
uma estranha calma se apoderar de suas entranhas, Carolina sentiu o coração
desacelerar conforme assistia a cena que se desenvolvia diante de seus olhos
brilhantes e arregalados, ainda que sem vida, como os de uma boneca.
Ele tinha
as pernas curtas arqueadas para os lados, o que fazia com que balançasse o
corpo ao andar. Ao levantar o corpo de Mariana em seus braços, ele cheirou o
pescoço da menina, esfregando o rosto no dela, e abriu a porta. Pela janelinha,
Carolina viu o diminuto homem correr em direção à mata e perder-se na
escuridão.
-Oi meninas!
Vim ver como se vocês precisam de alguma coisa. – A mãe de Mariana descia o
caminho de pedras com um copo de Martini na mão. – Carol, fofa, o que foi?
Carolina
estava sentada em um balanço, quietinha, olhando fixamente para a floresta.
Preocupada,
a mulher entrou na casinha, para então sair de novo aos gritos.
-Cadê a
Mariana!?
Um vento
gélido veio de dentro da floresta, uivando. Uma rajada forte, viva e pulsante,
fazendo os galhos daquelas árvores centenárias balançarem e suas copas farfalharem,
como se falassem, com cuidado para não perturbarem o silêncio quase palpável.
Como se cochichassem.
E em silêncio, Carolina deu impulso com os pés.
E balançou também.
2 comentários:
Bonis, as vezes eu tenho medo de você. Muito medo.
Caraio Bonaldi, muito bom mesmo! D;
Olha que eu não sou um leitor nato, mas esse conto prendeu minha atenção e achei muito foda, parabéns! *-*
Postar um comentário