quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Conto: Três putas velhas



- Esta vendo as manchas de sangue? Está vendo? – Alex abraça o primo e aponta o dedo direito para o ônibus no meio do canavial. A caveira de ferro do anel, quase totalmente preta pela oxidação, escorrega para o lado e me encara, sem olhos.
Eu acendo um cigarro, dou três tragos que me amargam a garganta e o passo para Mateus. Aquelas são manchas de ferrugem, mas à noite e sob a luz inquieta da queimada elas parecem feridas abertas.
Roni estende a mão, pedindo um trago. Mateus limpa algumas cinzas que pousaram sobre o ombro, acende um baseado na brasa e passa o cigarro para o amigo. Estamos os três encostados na caminhonete do meu pai observando o fogo alto e imponente que devora a lavoura de cana lá embaixo, no gigantesco terreno que circunda o morro onde estacionamos. Um vento quente e fumacento sopra contra nós, mas ninguém reclama.
Atrás de nós outra caminhonete chega pela estrada de terra que leva à cidade. A música alta a anuncia, e uma nuvem de poeira encobre seus rastros. Três caras e uma menina que eu nunca vi na vida pulam da caçamba, e mais dois amigos do primo de Alex. Eles tiram uma imensa caixa térmica dali e Alex os abraça também, dando socos e empurrões.
- É hoje, meus caros! É hoje! – Alex abre uma lata de cerveja e a ergue em direção às chamas do canavial, uivando. – É hoje!
Da cabine descem Lívia e o namorado, e eu sinto um misto de nostalgia e irritação revirar-me o estômago. Eles nos abraçam e cumprimentam com as frases que sempre falamos nos nossos encontros cada vez mais raros: “E aí, sumidos?”, “Quanto tempo, hein?”, “Tou só o pó, trabalhando demais”, etc.
- E pensar que um ano atrás era ela quem estaria entornando a vodca na goela desses moleques. – Roni comenta de canto, e Mateus o cutuca com o cotovelo.
- Não começa, Roni. – Adverte, segurando a fumaça.
Mas ele está certo. Nós três sabemos.
Em cima do capô, Alex derrama a vodca barata na boca dos três caras, que não passam dos dezoito anos. O último gole é dele, generoso, antes de arremessar a garrafa. Alto, com os cabelos castanhos levemente ondulados até os ombros e olhos azuis, Alex seria o Jesus Cristo perfeito para uma encenação de páscoa, o genro perfeito disputado pelas carolas – se sua magreza, o rosto sulcado e a pele verruguenta não fosse fruto das drogas. Com trinta e dois anos nas costas, ele ainda se veste e se comporta como vocalista da banda punk que tivera quinze anos atrás. O primo e os amigos são da segunda geração a se encantar por ele; Mateus, Roni, Lívia e eu éramos da primeira, mais inocente e deslumbrada do que lisérgica.
A primeira de muitas, aparentemente.
As cinzas começam a cair sobre nós. Primeiro esparsas, ciscos de um cinza claro, frágeis e quebradiços. Depois maiores, de um preto fosco, fazendo a gente ter consciência de que alguma coisa de fato foi queimada. Amanhã a nossa querida cidadezinha – trinta mil habitantes, dois prédios e um semáforo – amanhecerá cheia dessa fuligem nos quintais, nas pracinhas, nas ruas e nos para-brisas. As pessoas andarão indiferentes aos pequenos redemoinhos de vento brincando com a sujeira e a fina névoa insistente. A impressão é a de uma cidade fantasma, sendo eternamente purgada por essa neve tóxica e inconspícua. Eu vou observar as pessoas e o dia seguindo seu fluxo, como se fosse o único que realmente pode enxergar as cinzas e senti-las entupindo meus pulmões. Meu mal é reparar demais nas coisas, é uma merda.
Animais, plantas, veículos, corpos, lixo, crianças. É infindável a lista de coisas que podem ser consumidas pelo canavial.
-E aí, vai rolar ou não? A gente precisa acordar cedo amanhã, né mô? – Reclama Lívia, e eu reviro os olhos e encaro Mateus, que já está bem longe daqui. Nós também precisamos, penso, mas apenas balanço a cabeça para ela, em acordo. O namorado dela solta um “Hu hum” enquanto toma um gole de refrigerante. Ela prende o cabelo loiro e comprido e reclama do calor para mim, abanando o rosto com a mão, mas eu me viro e vou pegar uma cerveja. Ela está certa, mas eu me recuso a concordar. Me recuso.
- Muito bem, senhoras e senhores! – Diz Alex abrindo os braços na nossa frente. O fogo e a fumaça ao fundo se confunde com a jaqueta de couro e a camiseta de rock, dando a impressão de um Croma Key mal feito dos programas do começo dos anos 90, os braços e a cabeça sem um corpo. O apresentador cheirado e bêbado continua. – Vamos dar início à cerimônia voltando um pouco no tempo. Através desse canavial passava uma estrada de terra, por onde os ônibus escolares trafegavam para levar e trazer as criancinhas da zona rural – ônibus como aquele.
Ele aponta teatralmente para a carcaça semiescondida na plantação, e seus novos pupilos o observam, quietos. Roni e eu nos olhamos e seguramos a risada. A performance de Alex fica cada vez melhor.
- Há cerca de quinze anos, em um fim de tarde chuvoso, um ônibus acabou perdendo a direção e bateu de frente com um caminhão carregado de óleo que vinha da usina e bum! Explodiu. Todos morreram – os dois motoristas e as quarenta crianças.
- Não eram vinte? – Cochicha Roni.
- E porque que só o ônibus ficou abandonado ali...? – Comenta Mateus.
Alex olha de esguelha para eles em sua pausa dramática, fuzilando-os com o olhar – algo desnecessário, pois o showman já fisgou sua plateia.
- Um capataz que vivia ali por perto ouviu o acidente, mas por causa da chuva muito forte e por não ter carro ou telefone acabou não podendo fazer nada. Ele foi obrigado a ouvir as crianças gritarem enquanto eram queimadas vivas. No dia seguinte encontraram-no vagando pelo canavial, sem falar coisa com coisa e chamando pelas almas penadas. Vocês sabem quem ele é né? O Tião Marrento, aquele mendigo louco que brigava com todo mundo na rua e foi atropelado pelo trem no ano passado.
O trio balança a cabeça, e um deles cochicha um “pode crer”. De todos os causos e fantasmas que assombram a cidade, esse talvez seja o mais legítimo. Logo Alex também entrará para o rol de personagens daqui, uma lenda viva a ameaçar a moral e os bons costumes da juventude. Algumas coisas nunca mudam, enquanto que outras...
Eu olho para Roni, que tenta inutilmente achar um sinal para o celular. A gente se conheceu no prédio em que Mateus e eu morávamos. Uma tarde nós descemos para brincar na garagem e lá estava ele, sentado em silêncio olhando para o vão dos apartamentos, ouvindo os barulhos de domingo: o tilintar dos pratos do almoço que sempre atrasava, as discussões, as risadas, o futebol na televisão. Roni se mudara com a mãe e o namorado novo dela, que passavam o tempo livre discutindo e bebendo na sala ou trancados no quarto. Ele nunca comentou nada, mas eu sabia que as horas que ele passava ali com o pescoço dolorido e a cabeça tombada para trás era o que ele conhecia de uma vida familiar. É o tipo de coisa que não precisa ou não deve ser dita; os três estavam preocupados demais em brincar para pensar nisso. Roni e eu fizemos faculdade e moramos na mesma cidade agora, e quando nos vemos também não nos apegamos a fatos ruins; sei que ele está sofrendo por causa da namorada que o deixou e que o novo chefe está lhe tirando o sono, mas enfim, estamos sempre preocupados demais em matar a saudade para falarmos disso.
Mateus e eu praticamente nascemos juntos. Enquanto Roni e eu éramos os baixinhos encrenqueiros, ele era o gigante de bom coração e sem tempo quente que acabava nos defendendo e brigando pela gente quando arrumávamos confusão. Ele morou em São Paulo por um ano enquanto estudava e fazia parte de um time semiprofissional de basquete, mas a morte da irmã o fez largar tudo e voltar a morar com a família, trabalhando no escritório do pai. Jéssica tinha um tipo raro de leucemia e em um fim de semana que os pais foram ver o filho jogar na capital, ela fora internada às pressas e morreu depois de alguns dias. Mateus se culpava, a mãe se culpava, os avós culpavam o hospital e o pai não culpava ninguém, exceto Deus; todos procuravam um culpado para não encararem o fato de que coisas ruins acontecem com pessoas boas, e vice-versa. É a vida, ponto final. Fim. Sem explicação ou lição. Mateus nunca toca no assunto e diz levar tudo numa boa, que tudo está bem agora. Mas a quantidade de maconha que ele passou a fumar me diz o contrário. Enfim, outro fantasma que ninguém quer exorcizar.
E Lívia... Bem, nos últimos anos fomos os melhores amigos que já existiram.
- Ninguém nunca usou o terreno por respeito e por medo, pois dizem                que o lugar é assombrado até hoje pelas criancinhas que brincam de esconde-esconde por ali. Mas como a usina foi vendida e, como vocês veem, os negócios estão prosperando...
- Não enrola. – Reclama Lívia em voz baixa batendo o pé, para a minha irritação. A blusinha rosa claro e o jeans cheio de brilho chegam a ser uma afronta, quase um insulto pessoal se comparados com as roupas que ela vestia antes. Eu tento não entrar em paranoias, e respiro fundo.
- ...E essa é a última chance de vocês participarem dessa tradição. Meus camaradas, vocês vão correr até o ônibus e pegar um pedaço do estofado do último banco de passageiros, poltrona 42. Mas rápido, pois o fogo não vai demorar para alcançar o busão.
Eu olho para o pedaço de estofado velho e amarelado que retiro do bolso, esfarelando-se. Mateus e Roni fazem o mesmo.
- Na boa gente, já deu a hora. Beijos para quem fica. – Diz Lívia depois de um bocejo, acenando para nós. Alex dá de ombros e volta a falar com os garotos. O casal entra na caminhonete e parte de vagar, deixando uma nuvem baixa da poeira marrom – até isso é sem graça neles, meu Deus.E então algo explode dentro de mim, o ápice de uma discussão acalorada que nunca aconteceu.
- Sabe o que mais me irrita? É a prepotência e a arrogância dela. Só porque ela está praticamente casada com aquele playboyzinho sertanejo e levando a vidinha casa-trabalho burguesa com o “mô”, ela se acha totalmente superior aos outros. E não é nem o fato dela estar pagando a língua sobre praticamente tudo o que ela já disse sobre relacionamentos (Roni concorda com a cabeça, pensativo), mas a hipocrisia. Há um ano ela era a mina mais descolada da cidade, a que todas invejavam e queriam ser amigas, bebendo e curtindo como se não houvesse amanhã. Foi só começar a namorar e pronto: começou a agir como se estivesse casada há dez anos, com um discurso medíocre e moralista, machista até – enfim, o de uma dona-de-casa. Pensando bem, acho que ela sempre pensou assim, foi só a máscara que caiu.
- Cara, todos nós já fomos mais animados. – Argumenta Roni.
- Eu sei, eu sei... – Concordo, respirando. – A gente cresce, muda, vai ficando mais velho... Mas ela se agarrou nessa vidinha e se vangloria como se nada mais fosse melhor, como se a gente fosse inferior. – Eu olho para a fumaça densa no céu, perplexo com a minha própria confissão. – Isso não é amadurecer, isso é se esconder.
- Tipo quem para de fumar, mas dá uns tragos quando bebe, e reclama de quem fuma? – Mateus me acusa com um sorriso de canto e os olhinhos vermelhos e baixos, mas ainda brincalhões, e ele me desarma. Eu abraço a cintura dele, e ele encosta a cabeça sobre a minha, me abraçando também. Eu queria dizer para ele nunca mudar, para continuar com aquele sorriso largo e inocente para sempre; queria dizer o quanto sentia falta das nossas conversas sobre o nada e as madrugadas filosóficas regadas a vinho e maconha; queria contar o quanto me sentia sozinho e perdido, sem coragem de vislumbrar o futuro; queria dizer que também não suportava as coisas boas que acontecem com as pessoas ruins, que estou ficando tão amargo que nem me reconheço mais. Enfim, eu quero chorar, mas o mundo já tem fantasmas suficientes, e é melhor não tocar nesses assuntos, também.
Então eu me recomponho e encaro o céu. A fumaça está altíssima e cobre a vista, fazendo a paisagem parecer um cenário falso. Tudo parece enfadonho – a garrafa quebrada na areia, Alex, os garotos entornando cerveja e dando gritos e socos uns nos outros para criar coragem, as outras pessoas que eu sequer conheço e que não fazem diferença. Os novatos estão alinhados na beira da encosta, esperando o sinal do mestre.
Roni, Mateus e eu nos levantamos, e instintivamente sabemos que é hora de ir embora.
- Falou, Alex! – Grita Mateus, e nós acenamos.
- Até vocês, suas putas velhas!? Então tá, vacilões! – Grita ele tentando soar bravo, mas a excitação do momento o domina.
Nós rimos e entramos na caminhonete. Somos três putas velhas demais para achar que desastres acontecem só nos causos alheios e nos feriados prolongados – e a noite está pedindo por uma tragédia, com o palco armado atrás da cortina de fumaça.
Eu dou partida e saímos em silêncio, ouvindo a música e as risadas esmaecerem-se e ficarem para trás, até que o vento as abafa por completo. No retrovisor as chamas ardem, implacáveis.