terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Conto: Um artigo de muito boa qualidade



Era oito horas da manhã, e a sala já estava esfumaçada.
Cida encontrou seu Tomas quando chegava para trabalhar. A senhor de 70 anos abriu um sorriso que pareceu movimentar todas as rugas de seu rosto, tirou o chapéu e cumprimentou a empregada.
-Bom dia, Cida!
-Ela já levantou, seu Tomas?
-Já. Não queria perder a entrevista com o autor da novela no programa da Ana Maria. – O tom dele era debochado, mas as antigas olheiras que garniam aqueles olhos azuis glaciais pareciam ainda maiores naquela manhã. – Bom dia, minha filha, e bom trabalho.
- Vai com Deus, seu Tomas.
Cida entrou no casarão, e o som da porta reverberou pelas paredes velhas e as janelas frouxas. Ela foi até a cozinha, pegou uma xícara de café, vestiu o avental e foi até o corredor que dava para a sala de estar, de onde se ouvia o som alto da televisão.
-Caiu da cama, dona Helena?
-Xiu! –Censurou a patroa, estendendo o braço até a mesinha ao lado do sofá e pegando o cigarro do cinzeiro já cheio.

Cinco quartos, dois andares, dois banheiros, duas salas, uma cozinha, e um quintal imenso que se comunicava com o jardim da frente por ambos os lados – o casarão era imenso, com um pé direito alto como não se vê há tempos. Cida era corpulenta, com braços fortes e ancas largas, cinco filhos, 35 anos e um marido que há muito não via. O casa era trabalho para no mínimo duas pessoas, mas, além de precisar muito do emprego, ela se afeiçoara aos patrões e não pensava em sair dali tão cedo, por mais que dona Helena pudesse ser... Caprichosa.
-Cida, meu chá, por favor.
A patroa ficava na sala de estar a maior parte do tempo, vendo televisão. Com um braço em riste ao lado dos cabelos castanhos cuidadosamente penteados, ela permanecia no sofá por horas a fio, quieta e compenetrada como um felino.
-Cida, mais açúcar, por favor.
Ela sorvia cada cigarro como se fosse o seu último – ou melhor, como se fosse o primeiro, com uma ânsia genuína. Por vezes ele fechava os olhos para apreciar melhor o trago, deixando a fumaça sair por conta própria de sua boca; não era raro vê-la aproveitar a brasa de uma bituca para acender o próximo. Dona Helena fumava uma dessas marcas antigas, uns cigarros compridos e finos, e no começo Cida não podia deixar de se lembrar de quando era pequena e suas tias fumavam a mesma marca, na casa de sua avó. Às vezes Cida encontrava a patroa com um olhar perdido sabe-se lá deus onde, blasé como as divas dos anos 50.
-Cida, por favor, não me faça pedir de novo.
Embora a criação de dona Helena a impedisse de manter qualquer laço afetivo com a criadagem, em certos dias a patroa levantava-se do sofá e, vestindo suas melhores joias e melhores roupas – que ela mesma confeccionava – ela ia para a cozinha ou onde quer que Cida estivesse e se punha a conversar.
Ou melhor, a falar.
Dona Helena explicava o que vinha acontecendo nas cinco novelas que seguia e na reprise da tarde, comentando de modo entusiasmado o que os vilões aprontaram e o martírio do casal de protagonistas.
-É mesmo? –concordava Cida, preparando a salada.
Muitas vezes ela comentava os noticiários do dia, mostrando-se indignada com a política atual e as barbaridades do mundo moderno, as descobertas da medicina, a pouca-vergonha das celebridades. E ainda que ela se esforçasse para se mostrar totalmente atualizada e por dentro da vida fora daquele casarão, sua mente a traía e Cida percebia a perplexidade e a solidão de alguém que não tinha ideia do que estava acontecendo no mundo, o desamparo e a ansiedade de quem precisa discutir a realidade para ter certeza que, de fato, ela é real.
-Minha nossa! Comentava Cida, varrendo a sala de jantar.
Por vezes ela falava das roupas que costurava para si mesma - seguindo as dicas mais quentes dos programas vespertinos e as tendências das moda – e do minucioso ritual de beleza que realizava todo santo dia: os cremes para as mãos e para os pés, os hidratantes, os exercícios faciais, o intrincado penteado, as unhas sempre impecáveis, a maquiagem sempre imaculada, a precisão das borrifadas de perfume francês, os longos e silenciosos banhos de banheira.
-Que trabalheira, dona Helena! – Exclamava a empregada, colocando a roupa suja de molho e tentando imaginar quantas vezes ela já ouvira aquele mesmo discurso.
Mas na maioria dos dias ela apenas existia na frente da TV, ou então ficava observando o movimento na rua pela janela do quarto, entre as cortinas, erguendo e abaixando o cigarro mecanicamente.

Claro que Cida estranhara de início. Ela trabalhava na casa paroquial quando o padre Josué lhe pediu um favor.
- Por mais que me doa perder minha fiel ajudante, gostaria que você considerasse trabalhar na casa do seu Tomas, ele está precisando de uma empregada.
-O dono da loja de armarinhos?
-Ele mesmo. Mas a situação dele é um tanto quanto... Delicada. Sabe Cida, essa cidade é muito pequena e o povo fala demais. Então mesmo que você não aceite, peço descrição total e absoluta. Tenho a sensação de que você é uma pessoa iluminada e que vai saber lidar com a natureza... Digamos inusitada em que se encontra meu grande amigo, o seu Tomas, e a esposa dele.
-Espera, esposa? Ele não é viúvo?
_Então...
Naquela mesma tarde, Cida entrou na minúscula loja de armarinhos e fingiu olhar a prateleira de novelos de lã enquanto seu Tomas atendia uma freguesa.
-Dona Hortência, a senhora não vai se arrepender de comprar esse tecido. Sente só a maciez, a resistência. É um artigo de muito boa qualidade – e não solta tinta na hora de lavar...
Um artigo de muito boa qualidade. A frase tinha uma respeitabilidade quase nostálgica, uma sensação de aconchego que pegou Cida de surpresa – foi praticamente uma revelação, um momento de comunhão com o destino. E quando dona Hortência saiu da loja e seu Tomas virou-se para ela abrindo o sorriso mais acolhedor que ela já vira, ela soube que não poderia recusar o emprego.
Nas últimas semanas dona Helena vinha se comportando de forma estranha e, por mais que Cida soubesse o porquê de seu estado agitado e quase febril, aquilo ainda a preocupava.
Quando ela começara a falar sozinha, Cida chegou mesmo a ficar aliviada – era um descanso para seus ouvidos, e suas amigas viviam lhe contando das patroas que abriam o coração para as samambaias ou que davam sermões no gato quando não tinham coragem de gritar com o marido. O problema surgiu quando Dona Helena começou a discutir com os personagens das novelas. Eram lapsos breves; a patroa logo reparava no que estava fazendo e se recompunha. Mas ela chegara a passar dias inteiros comportando-se de forma teatral e afetada, e só voltava a si quando ouvia as janelas e a cristaleira da sala tremer quando o marido voltava da rua.
É por isso que os condenados a prisão perpétua viram pastores, fazem cursos à distância ou qualquer outra coisa que ocupe a mente deles, refletia Cida com tristeza. Senão eles ficam loucos. “Mente vazia, oficina do diabo”- assim como o Senhor, o Coisa Ruim opera de formas estranhas e misteriosas. E naquele casarão vazio e solitário, não era de se espantar que uma pessoa na condição de dona Helena se perdesse em seu próprio mundinho... Quando menos percebia, Cida também estava murmurando com o próprio reflexo na mesa de carvalho recém-polida.
A patroa estava particularmente inquieta naquele dia. Depois do programa matinal, ela passara a manhã toda experimentando combinações de vestidos, sapatos e acessórios, fazendo poses na frente do espelho. No fim da tarde, ela surpreendeu Cida com uma pergunta:
-Estou bonita?
Cida virou-se e a observou, sorrindo. O vestido champanhe criava o contraste perfeito com a pele rosada e sedosa de dona Helena, lisa como a de uma boneca de porcelana. Os pés delicados calçavam um Scarpin elegantíssimo, combinando com o colar de rubi que adornava seu colo alvo e que quase alcançava seus seios firmes e pequenos. Os cabelos curtos e penteados deixavam à mostra o par de pérolas dos brincos. Ainda assim, dona Helena mordia o lábio inferior e esperava pela resposta da empregada, insegura como uma menina.
-Mas assim a senhora vai matar o seu Tomas do coração! Está uma princesa, como sempre. –Disse Cida, balançando a cabeça e rindo.
-Bondade sua. Ah, agora o mais difícil, a maquiagem! Como eu vou esconder esses malditos pés de galinha? – Exclamou a patroa enquanto subia apressada as escadas.
-Como sempre... -Repetiu Cida em voz baixa.

Quando Cida finalmente entendera a “situação delicada” de dona Helena, já era tarde demais para ficar com espantada.
A princípio, aquele parecia ser mais um caso de uma moça de 27 anos mimada e superficial sendo sustentada por um namorado (bem) mais velho. Mas algo não se encaixava. Além dos detalhes rotineiros estranhos, ele não parecia ser o tipo de homem que viveria em uma situação daquelas. Seu Tomas era um homem simples e direito, e Cida quase nunca se enganava com as pessoas.
-Quando nos conhecemos, eu tinha 18 anos e ela 25, e foi amor à primeira vista, minha filha, por mais piegas que isso possa parecer. Bom, naquela época não era. – Explicou Seu Tomas certa manhã. A verdade estava tornando-se tão óbvia que teria sido uma falta de respeito não revela-la de uma vez, segundo ele. – E naquela época também ela já estava passando da idade de se casar, você sabe como é. Pois bem, depois de dois anos de noivado nós juntamos os trapos. A Helena sempre foi deslumbrante, Cida. Deslumbrante e linda. E sempre foi meio que desse jeito, sabe? Elétrica e animada, expansiva... Bem, algumas coisas mudam com o tempo...
O olhar dele vagou por um tempo, pesaroso.
-Mas o que ela tinha de linda também tinha de insegura. Seus ataques de ciúmes eram devastadores. Eram os nervos, diziam os médicos. “Histérica”. E os medos dela foram piorando cada vez mais... E uma noite eu cheguei em casa e a encontrei na banheira... -Ele encarava Cida, mas seu olhar ainda estava perdido nas memórias, em silêncio.
-Ela não pode saber que você sabe da verdade, Cida. Ninguém pode. Isso a destruiria de vez, e eu a amo tanto que... Não sei se suportaria vê-la pior.
-O senhor sabe que não tem culpa de nada, não é? – Disse Cida em voz baixa.
-Sei. Mas ela se transformou nisso que ela é hoje por minha causa, não há como negar. Esse fato vai me assombrar para sempre, minha filha... As assombrações não são exatamente como a gente pensa que elas são. – Seu Tomas arqueou uma sobrancelha e riu de soslaio.
Cida não pode fazer nada senão suspirar fundo e jurar que jamais tocaria no assunto.
-E já que estamos falando de assuntos delicados, o senhor vai me entender se eu pedir um aumento, não é?

Mas isso fora há cinco anos, e há muito tempo.
Cida dava os toques finais na mesa de jantar para dois, enquanto Dona Helena tentava escolher os castiçais que melhor combinavam com a toalha de renda.
-Não se esqueça de esvaziar os cinzeiros antes de ir embora, Cida. Pode ir mais cedo, hoje.
_Obrigada, dona Helena, pode deixar. – Cida pensou em parabenizar a patroa, mas achou melhor não.
Na cozinha, ela encontrou seu Tomas chegando do trabalho, com o paletó dobrado sobre o braço direito e carregando uma caixa de confeitaria.
-Quer ajuda?
-Não, minha filha, obrigado. É uma torta de chocolate, a preferida dela. Guardo um pedaço para você.
Será que os olhos dele sempre brilharam assim quando ele falava dela? Pensou Cida.
-Seu Tomas, o senhor não existe! Homens como o senhor são um artigo em falta no mercado...
Ele riu todo acanhado, como um menino, e ela o abraçou.
-Parabéns. Não é todo dia que se faz 40 anos de casado.
-Obrigado, minha filha. Boa noite.
Quando estava indo embora, Cida espiou pela porta do corredor e viu dona Helena abraçada ao seu Tomas, chorando. Pela primeira vez ela viu a patroa como uma velinha: pequena, frágil, débil até, os ombros curvados sacudindo com os soluços. Seu Tomas então levantou o rosto da esposa e limpou suas lágrimas, sussurrando alguma coisa.
Não é à toa que dona Helena se espantava com o que via na TV, pensou Cida enquanto esperava no ônibus. Aliás, não é à toa que o mundo está do jeito que está – o amor que está em falta por aí estava concentrado naquele par de olhos azuis.