terça-feira, 7 de agosto de 2012

Conto: Uma visita inesperada


Carolina desceu o caminho de pedras que levava da enorme casa de campo para a casinha de bonecas, que ficava nos fundos. Ela vinha nas pontas dos pés e com um braço erguido, como se segurasse com um cigarro. A berrante construção de madeira cor-de-rosa destacava-se dos tons de verde da floresta que circundava a propriedade e do lago, a alguns metros, com sua superfície acinzentada quase imaculada. A manhã estava nublada e fria.
- Mariana, minha querida! Você não imagina como estava o trânsito. – Falava a menina de forma afetada. Ao chegar na frente da casa, Carolina bateu na porta.
- Carol, mas que surpresa! – Recebeu a amiga, com um copo de Martini de plástico cheio de suco. Ela arrumou os cachos loiros com a outra mão e convidou a visita para entrar.
Carolina tinha seis anos e Mariana, cinco.
A menina cumprimentou a anfitriã com um beijo em casa bochecha, retirou a bolsa de lantejoulas e a pôs em uma estante abarrotada de ursinhos e brinquedos.
- Meus pais mandaram um beijo. Eles estão lá em cima com... – Ao se virar, Carolina se deparou com uma visão inusitada, sentada na mesinha de plástico lilás. Por um segundo ela não soube o que pensar, voltando à suas feições e características infantis. Era o tipo de pessoa que ela não esperava encontrar em um “evento desse nível” (como falava sua mãe), e muito menos a sós com a amiga. Ela a estudou com cautela, tomando cuidado para não demonstrar a surpresa e a decepção – que estavam estampadas em seus olhos grandes e azuis. Ela esperava encontrar outras primas e colegas de sua melhor amiga, mas nunca um...
- Oi. _disse o menino sorridente.
- Ah, esse é o meu novo amigo. Essa é a Carol.
- Oi. – A menina sentou-se do outro lado da mesa, e ficou observando o lago, pela janelinha. A música abafada da casa de campo chegava até eles de vez em quando, trazida pelo vento. Ela lançava olhares nervosos para a amiga, que colocava bolachas e canapés em pratinhos roxos (combinando com seu avental cheio de pôneis) e mexia nas panelas de brinquedo, e para o menino – que lhe parecia um tanto... Diferente.
Uma fina neblina pairava sobre o lago, desfazendo-se à medida que o sol saía por detrás das pesadas nuvens. A superfície da água parecia fundir-se com o vapor e o céu cinza, no horizonte.
Carolina tirou as luvas (roxas) e o cachecol xadrez, e reparou na blusa longa e escura que o menino usava, de um tecido grosso e rústico (pobre). A gola lhe tampava o pescoço e quase alcançava seu queixo, e um gorro preto.
-Tá com frio? -Perguntou a garota.
O menino balançou a cabeça, com o mesmo sorriso líneo.
-Tendi. Ãhm... Seus pais também estão na festa do tio e da tia?
-Não. Eu moro aqui perto, e daí resolvi vim brincar com vocês.
Sozinho? Pensou Carolina, mas sua amiga já vinha do outro lado da pequena cabana, com os petiscos.
-Não é legal? Eu queria morar aqui também! E não ter que voltar pra cidade, pra escola...
-Ah, escola é uma droga! – comentou o menino, com a voz baixa, ao que as duas concordaram e riram.
-Ele tava me falando que morar por aqui é muito legal! Que ele e os amigos dele brincam o dia todo na floresta! – Os olhos da menina cintilavam. – Meus pais nunca me deixam ir na floresta, né Carol?...
-Ai, eu ia morrer de medo! – disse Carolina, rindo.
-Que nada, é super legal!
-Mari, olha o meu novo celular. – Carolina retirou o IPhone do bolso. Ele é cheio de joguinhos, tem internet...
-Eu pedi um desses pra minha mãe, mas ela disse que eu sou muito nova pra ele, af! Você tem iPhone?
-Um o que? –perguntou o menino, observando o celular sobre a mesa. Ele olhava desconfiado para o aparelho. -Ah, não, é meus pais também não me deixam ter um, af!
Carolina notou o tom o desconforto do garoto, e tinha quase certeza que era a primeira vez que ele dizia aquela gíria. Seu tom não era natural; era forçado, descabido – aliás, como o próprio menino, que não parecia se encaixar naquela situação. Meninos... af!I Pensou a garota.
-Como você se_
-E aí, a gente vai brincar de quê? – o menino interrompeu Carolina, olhando ao redor da cabana.
-De casinha, ué! Olha a comidinha!
-Ah, não isso é coisa de menina! Vamos brincar de esconde-esconde, lá fora!
-Minha mãe não deixa, eu só posso ficar aqui.
-Nem a minha. – completou Carolina, desapontada.
-Ah, tá bom, vai! – disse o menino, rindo.
Mariana então se sentou, e as duas atacaram a comida.

-Coloca mais suco pra gente? E coloca mais açúcar, que ele ainda está amargo, bléh! – Pediu Mariana, fazendo uma careta. Ela foi até o fogão e pegou o smartphone. Vou pedir pra minha mãe trazer refri.
O menino descruzou os braços e despejou o suco de uva nos copos. Para o espanto de Carolina, as pequeninas mãos dele eram curvas e enrugadas, com pelos negros sobre os dedos e unhas amareladas. Ele então tirou um saquinho de pano do bolso e colocou um pó branco nas duas taças, e as empurrou na direção das garotas. Carolina olhou assustada para a amiga, que dava um imenso bocejo.
-Ai, sem sinal! – E coçou os olhos.
Mariana voltou para seu lugar e pôs-se a tagarelar sobre as aulas de balé, as amiguinhas da escola, sobre as roupas que comprara e do cachorro que os pais estavam enrolando para lhe dar, enquanto bebericava o suco. O menino ria baixinho, e concordava com a cabeça. Carolina, porém, ficava cada vez mais tensa à medida que uma sensação ruim crescia dentro de si. Ela não parava de mexer nos cabelos pretos e longos, e sua respiração acelerava-se a cada gole da amiga – que não percebia que estava começando a falar engraçado. Será que a tia sabe que ele está aqui com a gente? O coração dela disparou, e a garota precisou segurar a vontade de chorar.
-Não vai beber o suco, Carol? Agora tá docinho. – comentou Mariana.
-É, Carol, bebe. – disse o menino, cujo sorriso desaparecera, deixando no lugar um rosto magro e sulcado, esboçando o extremo oposto de sua voz suave. Os vincos que se formaram dos lados da boca chamaram a atenção da garota, mas não mais que seus olhos – negros e redondos, quase negros, com um brilho vítreo. Carolina então desviou o olhar.
-Eu vou lá pra cima, Mari.
- Ah, espera! Tem o bolo. – Ao levantar-se, Mariana deu dois passos trôpegos, tentou se segurar em uma cadeira, mas acabou desmaiando.
-Mari! –Carolina ergueu-se com a voz embargada pelo medo, mas ele fora mais rápido. Com o movimento, do bolso de seu casaco caiu um cachimbo de madeira.
Ao ver Carolina acuada em um canto, arfando e com as expressões deformadas anunciando o choro, o menino sorriu, mostrando os dentes podres.
-Se eu fosse você, ficaria bem quietinha.
Quando ele se abaixou para pegar o cachimbo, seu gorro enroscou em um gancho para casacos – revelando uma lustrosa careca e um par de orelhas longas e pontiagudas.
Carolina começou a chorar e a dizer coisas ininteligíveis, mas algumas frases se formaram corretamente entre seus soluços.
-Deixa a gente em paz... Eu quero a minha mãe... MÃE! – o grito finalmente irrompeu de sua garganta.
Ele pulou o corpo de Mariana e agarrou o pescoço da menina com os dedos grossos e ásperos. Seu hálito era forte e pútrido, quente.
-Se não quiser que eu te visite todas as noites, mocinha, é melhor não contar isso para ninguém. Porque eu vou ficar sabendo. Eu vou. Você não imagina como as notícias voam nessa floresta...
Petrificada, a menina já não tinha certeza do que estava acontecendo. Muda, trêmula e sentindo uma estranha calma se apoderar de suas entranhas, Carolina sentiu o coração desacelerar conforme assistia a cena que se desenvolvia diante de seus olhos brilhantes e arregalados, ainda que sem vida, como os de uma boneca.
Ele tinha as pernas curtas arqueadas para os lados, o que fazia com que balançasse o corpo ao andar. Ao levantar o corpo de Mariana em seus braços, ele cheirou o pescoço da menina, esfregando o rosto no dela, e abriu a porta. Pela janelinha, Carolina viu o diminuto homem correr em direção à mata e perder-se na escuridão.

-Oi meninas! Vim ver como se vocês precisam de alguma coisa. – A mãe de Mariana descia o caminho de pedras com um copo de Martini na mão. – Carol, fofa, o que foi?
Carolina estava sentada em um balanço, quietinha, olhando fixamente para a floresta.
Preocupada, a mulher entrou na casinha, para então sair de novo aos gritos.
-Cadê a Mariana!?
Um vento gélido veio de dentro da floresta, uivando. Uma rajada forte, viva e pulsante, fazendo os galhos daquelas árvores centenárias balançarem e suas copas farfalharem, como se falassem, com cuidado para não perturbarem o silêncio quase palpável.
Como se cochichassem.
E em silêncio, Carolina deu impulso com os pés. E balançou também.

2 comentários:

Jullia A. disse...

Bonis, as vezes eu tenho medo de você. Muito medo.

danemoser disse...

Caraio Bonaldi, muito bom mesmo! D;
Olha que eu não sou um leitor nato, mas esse conto prendeu minha atenção e achei muito foda, parabéns! *-*