terça-feira, 29 de junho de 2010

Coletânea "O Lado Sombrio - 13 Contos Imortais"

Acabou se ser lançada o livro "O Lado Sombrio - 13 contos imortais", coletânea da Editora CanalBRV que reúne contos de terror e suspense de autores novos brasileiros - entre eles, este que vos escreve!



Suspense e terror são gêneros literários que fascinam leitores em todo o mundo, mas que ainda dispõem de poucos autores no Brasil. “Sabemos que há uma multidão de fãs assíduos, mas ainda carecemos de escritores desse universo particular da literatura em nosso País”, comenta o escritor Paulo Ballado. Foi pensando nisso que Ballado promoveu uma extensa seleção nacional. O resultado é a obra “O Lado Sombrio - 13 Contos Imortais” (Editora BRVCom, 128 pág.), que será lançada neste domingo (27/06), no Bar Calabouço.

“A seleção durou vários meses e utilizamos todos os meios possíveis, de indicações a entrevistas, para reunir os 13 melhores contos de suspense e terror de escritores brasileiros da atualidade”, relata Ballado.

São, ao todo, nove os autores da obra: Vitelio Brustolin, Vivian Wolkoff, Marcelo dos Santos, Rafael Bonaldi, Virgílio Gabriel, Dgenal Gonçalves Rocha, Rubem Cabral, Eduardo Caon e o próprio Paulo Ballado, que além de assinar o conto de encerramento, é o organizador do livro.

O livro pode ser adquirido POR ESTE SITE.

Mais detalhes no blog do CanalBRV!

Nota que saiu no jornal O dia, quando a coletânea foi lançada:



VAMOS AJUDAR OS NOVOS ESCRITORES BRASILEIROS, JÁ QUE A LITERATURA NESTE PAÍS É ALGO TÃO DESPREZADO - AINDA MAIS A LITERATURA FANTÁSTICA!

terça-feira, 1 de junho de 2010

Irmãos

Não venha me dizer que você não tem.
Eu tenho, você tem, todo mundo que puder imaginar tem. E isso inclui André Figueiredo, por incrível que pareça. Veja bem: essa cidade é pequena e o povo fala demais, não importa o assunto. E muitas vezes um caso é contado tantas vezes e por tanto tempo, sofrendo as mais variadas distorções e adições de detalhes, que ele acaba se tornando uma bela aberração, se comparada aos fatos originais. E quem vê André hoje, andando apressado pelas ruas para não perder a hora ou o ônibus, não imagina que esse trabalhador calvo e acima do peso seja ele mesmo - ou melhor, aquele André.
Meu irmão estudou na classe dele na sétima série...
Minha prima ficou com ele uma vez, antes daquilo acontecer...
Eu tenho um amigo, que tem um amigo, que comprou cerveja pra ele numa festa, há muito tempo atrás....
Todo mundo tenta criar um vínculo entre a história que vão contar e eles mesmos, é uma artimanha natural para se ganhar a confiança do ouvinte, pergunte para qualquer testemunha de Jeová. Mas acontece que André e eu éramos muito amigos naquela época. Além de estudarmos na mesma escola, fazíamos juntos aulas de judô desde criança e tínhamos quase os mesmos grupos de amigos – bem, nenhuma coincidência mágica para uma cidade como essa. Tínhamos 17 anos, certeza absoluta de que nossos sonhos estavam predestinados a darem certo, nenhum juízo e um indisfarçável otimismo diante da vida.
Mas André era... O Cara. Todo mundo conhece um cara ou uma menina assim, tem sempre um desses ao nosso redor nessa idade. Você já deve ter odiado uma pessoa dessas, ou amado em segredo, ou ainda deve ter copiado cada atitude e corte de cabelo na tentativa de ter "personalidade própria". Talvez tenha até começado a fumar por causa d'O Fulano ou d'A Sicrana. Eu era o amigo d'O Cara, com todos os benefícios que se pode ter disso. E em meio a garotas, festas, bebedeiras escondidas, competições de judô, mais garotas, escola e mais festas, não parecia existir nada errado ou fora do lugar no mundo; as coisas ruins estavam apenas no jornal das 8 ou na casa daquele primo distante. Até aquele dia.
Era mais um treino de judô, e André e eu estávamos ajudando o professor a fazer exercícios com os alunos menores. Chutes, socos, pulos, corridas, cambalhotas, enfim, todo o tipo de golpes de nomes complicados que eu já nem lembro. E todos queriam desafiar André, já que ele era o campeão das regionais pelo terceiro ano consecutivo. Ele lutou e venceu os novatos por umas duas horas seguidas, sem perder a pose, aproveitando cada vitória como uma merecida massagem no ego. E André sabia que estava cansado quando o último da fila pisou no tatame; sabia que suas costas estavam doloridas, e que o gordinho mal-encarado não sabia lutar limpo. Veja bem, não estou julgando-o, eu teria feito o mesmo. Por isso, quando André recebeu aquele chute na barriga que o fez cair e ficar desacordado por meia hora, eu devo ter sido a pessoa que mais sentiu sua dor. Ainda me lembro daquela sensação, queimando a boca do estômago.
Nas primeiras semanas, enquanto a notícia de sua derrota para um menino da sétima série se espalhava pela cidade, André tentava rir do assunto e arranjava mil e umas desculpas, sempre com um risinho nervoso e sua usual ajeitada na franja, jogando a cabeça para o lado. Mas o que só eu sabia era da dor em sua barriga que nunca passava, e que parecia só aumentar. Ele reclamava pouco; achávamos que era apenas mais uma contusão passageira. Mas às vezes, quando André não estava prestando atenção, eu observava seu rosto ficar tenso e preocupado, seu olhar longe e aflito, perdido por vários minutos. Até que ele voltava a si e olhava para mim, e a gente fingia que nada estava acontecendo.
Foi nessa época então que comecei a perceber o que todo mundo tem. Meu pai tinha insônia, coisa que jamais pude imaginar. Talvez a causa disso fossem as contas atrasadas ou as crises de choro na cozinha, de madrugada, enquanto tomava um trago. Até então eu nunca tinha percebido que minha mãe se entupia de antidepressivos. Ainda me lembro dela parada na pia da cozinha, o olhar fixo no céu, hipnotizada; sua boca esboçava um lindo sorriso, com dentes e tudo, e por vezes uma lágrima descia tímida, mal alcançando o lábio. Minha finada mãe... Sentia-me um criminoso reparando nesses momentos de solidão das pessoas. Era angústia, minha primeira vez: algo havia se partido dentro de mim, e eu espiava pela rachadura.
A barriga de André inchava. Sua família pulava de médico em médico na cidade, mas nenhum sabia dar um diagnóstico correto. Eventualmente os rumores começaram a sair dos consultórios e tomaram proporções dramáticas, já que em uma cidadezinha como essa o sigilo médico é tão forte quanto o de um confessionário. André já não saía mais nos finais de semana e mal frequentava a escola. Não só pelas dores terríveis que o faziam se contorcer, mas pelos olhares, as ofensas veladas e o abandono daqueles que sempre o rodearam. Eu sempre fiquei ao seu lado; mesmo nos piores momentos, como quando sua barriga chegou ao tamanho da de uma grávida, cheia de estrias vermelhas e roxas, eu passava dias em sua casa, tentando fazê-lo esquecer daquilo tudo. Chegávamos a dividir a mesma cama, varando a madrugada vendo filmes.
Todo mundo tem segredos. Daqueles desconfortáveis e delicados, que sempre deixam uma reunião de família em silêncio, e que geralmente passam despercebidos para a maioria das pessoas. Como duas meninas da classe, que sempre andavam juntas e se abraçavam e se beijavam demais; ou um garoto da outra turma que não percebia que estava sempre com as coisas dos outros na mochila. E com o tempo as coisas pareceram surgir do nada para a gente, apesar de sempre terem estado debaixo do nosso nariz: a irmã deprimida de meu vizinho fugiu de casa, cansada de ser molestada pelo tio; meu pai brigou com o cunhado, deixando bem claro uma desavença de mais de vinte anos; meu primo Tadeu passou a atender pelo nome de Tanya (com ípsilon); e a morte de parentes e amigos passou a ser mais incompreensível e comum do que nunca. Enfim, coisas que a gente aprende a se acostumar.
Um dia André começou a ter convulsões e apagou. Do hospital da cidade, ele foi levado para a capital, e lá ficou internado por um mês. Mas mesmo depois que ele voltou, seu semblante parecia mais sério, mais maduro. Falava pouco, passou a desinteressar-se por esportes e por festas. Seu círculo de amigos quase se extinguiu, principalmente pelo fato de sua doença nunca ter sido explicada para todo mundo, e até hoje você pode escutar desde câncer e AIDS até desintoxicação de drogas. Mas eu sei o que realmente aconteceu. E se isso não é um desses fatos estranhos que a gente tenta esconder... bem, acho que é pelo menos o tipo de coisa que faz a gente encarar a vida com outros olhos.
Chama-se “Fetus in fetu”. Há menos de 100 casos reconhecidos pela medicina desde o início do século XX. Acontece quando, na formação dos embriões de gêmeos idênticos, um deles acaba ficando dentro do outro, e passa a depender daquele que se desenvolveu para continuar vivendo, mesmo que não se desenvolva totalmente. Os especialistas explicaram que o irmão de André estava em uma cavidade acima do estômago, dependendo dele, mas sem causar danos à sua saúde. O golpe que ele recebeu no judô não só matou o feto, mas também o deslocou, causando uma reação de rejeição do organismo.
É conhecido também como gêmeo parasita.
“É o olho do meu pai”, me disse André uma das últimas vezes que estive em sua casa. Ele segurava o pote de formol contra a luz, e o pequeno feto girava na água oleosa como em uma vitrine. O olho aberto era azul, brilhante, diferente dos olhos verdes de André. O gêmeo era enrugado e tinha todos os membros quase totalmente formados, apesar de ser minúsculo. Seu cabelo era negro e farto. “Minha mãe insistiu em ficar com ele".
Com o tempo, nos tornamos dois completos estranhos. Bem, isso às vezes acontece com amigos de infância, nem todas as boas amizades duram para sempre. É mais umas das coisas que a gente aprende a se acostumar na vida. E mesmo que não seja errado sentir-se triste ao pensar dessa forma, é preciso saber levar, pois sempre que você se pegar acendendo um cigarro depois de tentar parar pela milésima vez, sempre que você esbarrar com O Fulano ou a Sicrana na rua, esse sentimento ruim vai aflorar, e é melhor não lhe dar vazão. É para o nosso próprio bem. Às vezes posso imaginar algum jantar na casa do André onde, em algum determinado momento, todos ficam em silêncio, sem mover os talheres ou as bocas. Ninguém se olha, mas a mesma sensação flutua por todas as mentes. Dura apenas um segundo, talvez menos até. Todos sentem como se estivessem sendo observados por um pequenino olhar, que nunca hesita, descansa ou perdoa.
Se bem que eu acho que todo mundo se sente assim algumas vezes.
Antes de a gente parar de se sentir obrigado a se cumprimentar ou ter que fingir que não viu o outro passar, André e eu saímos de carro algumas vezes para conversar e beber. Eram tentativas de fazer tudo voltar a ser como era antes; conversávamos e ríamos como se nunca tivéssemos nos afastado, e combinávamos de ligar para o outro no dia seguinte. Tudo em vão. Na última vez, era uma noite abafada e sem lua, e a gente bebia na caçamba da minha picape. Eu fiz uma piada que o deixou irritado, a ponto de quebrar a garrafa de cerveja na calçada, mas aí ele riu muito, e eu ri muito também.
- Já pensou que poderiam ser trigêmeos?
Depois, fez-se um silêncio longo e constrangedor. Daí ele me abraçou, e começou a chorar.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Primeiro filho

Alguns segredos são como câncer. Apodrecem-lhe por dentro.
A frase não lhe saía da cabeça, e Catarina não prestava atenção nem na paisagem que passava pela janela, e nem no marido, que falava novamente dos planos e sonhos para o bebê. Sua mente vagava longe de qualquer coisa que lhe dissesse respeito.
-... mas se for mesmo um menino eu não vou querer que ele estude no bairro e... Amor? Catarina? Terra para mamãe...
- Sim, sim, Marcos. Escuta, quando você pode me acompanhar ao doutor Silva?
- Não sei, tenho que ver. Com todos os casos novos no escritório, eu não posso deixar meu chefe na mão. Sabe como é, tenho que justificar a promoção! Mas há algo de errado? Você nunca se importou de ir sozinha. Eu posso falar com...
- Não, não, tudo bem.
O carro entrou na garagem da casa recém-comprada. O bairro não era muito bom, e toda a família tentou persuadi-los a não serem impulsivos, a alugarem um apartamento até o bebê nascer. Mas a energia do casal, tão jovem e entusiasmado a arcar com as escolhas de ter a própria família, logo contagiou todos ao seu redor. Era como sorrir ao ver uma criança dando os primeiros passos. O dinheiro era pouco e os quartos grandes e vazios, mas ambos tinham uma brilhante carreira pela frente - e o bebê veio como uma consequência mais do que natural, a peça mais do que necessária da tapeçaria da vida. “Porque no meu tempo, quando sua avó engravidou...”.
Catarina, agora no oitavo mês, sentia o estômago revirar ao passar pelo portão.
- Pode ir entrando, amor, vou pegar as compras.
- Surpresa! – Catarina quase caiu para trás ao ver os pais em sua sala, os braços abertos, um enorme sorriso em seus rostos e um faixa na parede, "SENHOR, ABENÇOAI ESTA CRIANÇA!". - Ai, querida, eu falei para o seu pai que você não pode se assustar, mas você sabe como ele é...
- Mãe, oi... achei que você ia chegar só semana que vem. – Ela tentava disfarçar o desconforto com um sorriso.
- Esse era o combinado, mas você conhece a sua mãe. Como vai, meu anjo.
- Estou bem, pai.
Marcos entrou na casa com sacolas, cumprimentando os sogros. Mas antes mesmo de colocá-las no chão, pulou para o meio da sala, em direção a um imenso embrulho de presente. – Meu, que é isso? Vocês não precisavam... UAU! Amor, olha, olha!
Catariana viu seu marido pular de felicidade, abrindo a caixa de um carrinho para bebês. Ele alisava a embalagem e olhava dela para a esposa, como um garoto ao ganhar a primeira bicicleta. Ela viu seu olhar brilhando de emoção, tão genuíno e emocionado, tão alegre, tão... apaixonado. Sua garganta apertou com um gosto amargo, os olhos arderam em lágrimas... e Catarina correu para o banheiro.
- Amor...
Ela sentou-se num canto e chorou, com o rosto contra uma toalha. Chorou por um bom tempo, deixando os soluços e as lágrimas lhe aliviarem o peito. Lá fora, um silêncio a aguardava, mas sua mãe já tinha avisado, com um olhar condolente: deixa, é coisa de grávida. Ao levantar-se para lavar o rosto, Catarina fechou com força o espelho do armário, causando uma pequena rachadura no canto esquerdo. O vidro refletira seus olhos cansados; mas agora mostrava sua barriga.

8 da manhã.
Catarina levantou-se, tomou os antidepressivos, lavou o rosto. Sua mãe já estava na cozinha, preparando o café. O pai partira de madrugada para evitar o trânsito, e ela não parava de falar e reclamar. - Mas não se preocupe querida, ele volta assim que o bebê nascer.
O bebê. Catarina então acordou.
Marcos passou correndo pelas duas, engolindo uma xícara de café e uma bolacha. Beijou a esposa na testa e já estava na porta quando voltou para pegar a maleta.
- Ai, é uma pena o que aconteceu com a cadelinha, a... como era o nome dela mesmo? A Lica, isso, Lica! Ia ser tão bonito as duas mulheres da casa com seus filhinhos!
- Dona Irene! Por favor, né... - advertiu Marcos.
- Só comentei, poxa! É a natureza. Tem cachorros que fazem isso com os filhotes quando eles nascem fraquinhos, ou quando elas estão doentes. Não é crueldade não! E ela deve ter fugido porque os animais...
- Não foi nada bonito ter que dar um jeito naqueles filhotinhos todos... argh! Deixa pra lá! Ainda bem que você não viu nada, né amor? Bom, tenho que ir. Até!
Catarina olhava para o quintal, as folhas secas vindas dos vizinhos sobre a grama e sobre o canteiro de flores. Ela havia se esquecido de regá-las, e todas pareciam tão exaustas quando ela. Porém não tinham os pés inchados, dores pelo corpo, quedas intermináveis de cabelo, estrias, nem consciência do quão rápido o tempo passava, não tinham botões; já estavam secas demais. - Algumas fêmeas não nascem para serem mães, eu acho. – E levantou-se da mesa.
Sentada no futuro quarto de seu primeiro filho, a sombra do móbile de cavalos passava por seu rosto inexpressivo, enquanto suas mãos dobravam repetidamente as roupas que a criança já havia ganho - quase todas verdes ou amarelas, já que o sexo seria surpresa. “O que estou fazendo com o Marcos? Como explicar para ele? Meu Deus... eu o amo tanto, tanto! Tudo era tão lindo. Ele é tão lindo. Deixei que isso fosse longe demais. Acho que ele já nem me reconhece. Eu não me reconheço. Não carregando esse... esse...”. Sua mãe entrou no quarto e sentou-se ao seu lado.
- Me perdoa mãe, me perdoa? – Catarina a abraçou, começou a chorar e adormeceu.

Quando Marcos chegou à noite, Catarina parecia mais animada, e o marido gostou de vê-la falante e agitada na cozinha com dona Irene.
- Filha, só esse copo de vinho. Vocês preferem carne vermelha ou branca?
- Ahn... é... nós estamos evitando comer carne, dona Irene. - Disse Marcos sem jeito, e apontou com os olhos para Catarina.
- Catarina! Onde já se viu! Você está...
- Eu sei! – gritou Catarina, para a surpresa de ambos. – Mas desde o começo do mês não posso nem sentir o cheiro de carne. Meu estômago embrulha, tenho ânsias que até fazem minha barriga doer! E me vem um gosto estranho na boca, como se fosse... como se fosse... ai, olha, só de falar. - ela pôs a mão na protuberante barriga e foi para o sofá. O marido e a sogra se entreolharam, mas Marcos desviou o olhar. Ele tentava disfarçar a todo custo.
Catarina acordou assustada no meio da noite. Estava ensopada de suor, sentada em um canto do quarto. Não sabia como havia chegado ali. Ela então se acalmou, controlando a respiração, enquanto seus olhos se acostumavam com a escuridão. Assim, foi percebendo lentamente os machucados nas palmas das mãos, as marcas das próprias unhas. Catarina voltou em silêncio para a cama, mas não percebeu os pés sujos de terra. Nem que Marcos estava acordado, observando-a aterrorizado.

O leite vazava, criando manchas escuras e redondas em sua camiseta. Catarina olhava seu reflexo na janela, a repulsa e a culpa enrijecendo-lhe os músculos quase em espasmo. Ao ir para a cozinha, Marcos apressou-se a tirar o saco de lixo da varanda do quintal, jogando-o no porta-malas do carro. Era sábado. Sua mãe estava no portão, conversando com as vizinhas.
- Amor, vou levar o lixo naquele terreno perto da rodovia, tudo bem? Qualquer coisa me...
- Ok. – Catarina parou na porta, observando o quintal limpo, a área recém-lavada. Marcos a observou de costas, tão linda e melancólica. Um arrepio lhe fez suspirar, quieto, sem querer aceitar os pensamentos que lhe inundavam a mente dia e noite. Ele tentaria de tudo para ajudar sua esposa, e só havia um lugar por onde ele poderia começar. Pegou as chaves e partiu.
Catarina tirou as sandálias e caminhou pelo quintal, olhando para o céu azul impecável, sem nuvens, sentindo a grama úmida. A casinha da cachorra parecia dez anos mais velha, pela poeira e as tigelas secas sob o sol, em um canto do terreno. Ela se aproximou, passando a mão sobre a fina camada de pó, fazendo pequenos desenhos com as pontas dos dedos - até que um prego cortou-lhe o indicador. Catarina, por instinto, levou a mão à boca, e o gosto de sangue lhe fez enjoar e vomitar. Ela curvou-se e ali, caída de quatro, a mãe sentiu o olhar ser atraído para o interior escuro da casinha, tão quente e próximo de seu rosto. Ela se levantou lentamente e tirou-a do lugar. Começou então a cavar, sem saber o que realmente estava fazendo ou por que. Cavou por vários minutos o quadrado de terra seca e fofa com as mãos trêmulas, sua ansiedade e medo cada vez maiores, até ver a ponta de um corrente. Puxou-a, sentindo o peso na outra ponta revolver a terra e finalmente se expor para a claridade do dia. Catarina caiu para trás ao ver o pequeno cadáver em avançada decomposição, gritando de horror e cobrindo os olhos. Em sua mente as imagens e sensações vinham como flashes violentos, mas claros: a mordaça... a faca... os olhos tristes da cadela... a corrente envolta de seu corpo ainda morno... os frágeis filhotes ganindo... suas peles macias e tenras... o gosto da carne.
O corpo da grávida fez um violento espasmo ficou quieto. Ela então se levantou calmamente, o olhar vazio e inexpressivo como o de uma máscara. Caminhou até a cozinha, pegou o frasco de álcool do armário e a caixa de fósforos. Despejou metodicamente o líquido sobre os sofás, o tapete e o carrinho de bebê, que estava bem no centro da sala. Afastou-se, acendeu um palito e caminhou para a frente da casa.
- Ai meu Senhor, fogo! Catarina!– Dona Irene correu para casa em pânico ao perceber a fumaça, as vizinhas gritando por ajuda. Ela abraçou a filha e correu para a casa da frente, enquanto a rua se enchia de curiosos e pessoas tentando ajudar. Logo uma sirene soou virando a esquina. A fumaça preta fedia, e envolvia a todos como uma densa neblina.

Com o rosto enterrado entre as mãos, Marcos tentava se recompor e continuar a falar. Respirou fundo, encarando o doutor Silva. - Cada vez que eu acordo com ela gritando feito uma selvagem e se debatendo, eu desabo, eu morro! Mas tento ser forte e ajudá-la, só que nada mais adianta! Ela nunca se lembra. Às vezes eu a pego com o olhar vago, perdido, e eu juro que ela pode ficar assim por horas a fio! E... meu Deus.... e...
- Algum incidente como o dos filhotes voltou a ocorrer? – perguntou o médico.
- Várias vezes. Quando consigo dormir, tenho que acordar mais cedo para tentar limpar a sujeira que ela faz de noite. Ontem foi outro gato... o senhor deveria ter visto o estado que, que... – e desabou a chorar, o corpo tremendo, o rosto entre as mãos.
Doutor Silva deixou o rapaz acalmar-se, procurando as palavras:
- Tudo indica que Catarina desenvolveu um caso de TDI - Transtorno Dissociativo de Identidade, agravado ainda mais pela depressão que ela vem sofrendo. Nesse estado alterado que se manifesta de noite, ela é outra pessoa, um indivíduo agressivo e com tendências psicóticas que dá vazão aos sentimentos que ela vem suprimido e lidado sozinha. Mas não é algo raro em casos como o de sua esposa.
- Suprimido? Mas eu tenho ajudado ela em tudo e...
- Eu descobri que ela sequer foi à psicóloga que eu indiquei a ela. Em sua atual condição, é imprescindível acompanhamento psicológico. É um fardo muito pesado e traumático para uma mulher carregar um filho morto. Mas felizmente esses três meses estão passando...
Marcos empalideceu e não ouviu mais nada.
Doutor Silva percebeu no longo silêncio que se seguiu o que estava acontecendo: Catarina não contara ao marido. A situação era pior do que ele imaginava.
- Marcos, eu preciso ver Catarina imediatamente. Ela pode representar um perigo não só para si mesma, como para qualquer outra pessoa.
Seu telefone tocou. Era sua sogra.

Dona Irene desligou o celular e foi consolar a filha desolada, que olhava para a casa.
- Calma filha, vai ficar tudo bem. Os danos não foram grandes! Logo estará tudo pronto para o bebê de novo!
- Mãe... o que aconteceu? Eu... eu...
- Calma, querida. Ninguém se machucou, graças a Deus. Olha, vou com Fátima pegar algumas roupas para você, é logo ali na esquina, volto logo, e o Marcos já está chegando. Você pode segurar o Julinho? Olha que coisa fofa de neném!
A vizinha deixou o filho no colo de Catarina, que observou as duas sumirem pelo portão. O bebê loiro e gorducho chupava o dedo calmamente em seus braços.
“Era um menino”, pensou Catarina. “O tempo está acabando, meu Deus! Como vou contar para todo mundo, para o Marcos! Eu falhei, eu não pude lhe dar um filho, dar um filho pro meu amor... agora ele é apenas um pequenino cadáver apodrecendo dentro de mim... como um câncer.... eu falhei ... o Marcos nunca vai me perdoar... um câncer... a cadela aqui falhou! Vou parir um primogênito natimorto! Um corpo bastardo em decomposição! Eu falhei, a cadela falhou Marcos, sua cadela falhou!...”.
As lágrimas desciam por seu rosto imóvel. De repente Catarina fechou os olhos e sua cabeça pendeu para frente. Ela então se levantou de vagar, com uma expressão vazia e fria nos olhos negros. Tateou o bolso da frente da calça, reconhecendo a caixa de fósforos. Olhou para os lados, viu a rua quase vazia. Olhou finalmente para a criança, que sorria para ela, mexendo as mãozinhas.
A grávida atravessou a rua com o bebê em seus braços, passou pela fachada chamuscada e, calmamente, atravessou a sala destruída e foi para o quintal.

quinta-feira, 11 de março de 2010

"O lado sombrio - 13 contos imortais"

Galera, aí vai o link do vídeo-propaganda da coletânea independente de contos de terror e ficção científica da qual eu estou participando!

Cliquem aqui!

Vamos dar uma força para a literatura fantástica brasileira! - e, de quebra, para escritores iniciantes!
Mais detalhes virão...


(ps: quem souber colocar aquela janelinha de vídeo do Youtube no blog vai ganhar um exemplar de graça!

Tá, num vai. Só um agradecimento e uma cerveja.)