terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Conto: Um artigo de muito boa qualidade



Era oito horas da manhã, e a sala já estava esfumaçada.
Cida encontrou seu Tomas quando chegava para trabalhar. A senhor de 70 anos abriu um sorriso que pareceu movimentar todas as rugas de seu rosto, tirou o chapéu e cumprimentou a empregada.
-Bom dia, Cida!
-Ela já levantou, seu Tomas?
-Já. Não queria perder a entrevista com o autor da novela no programa da Ana Maria. – O tom dele era debochado, mas as antigas olheiras que garniam aqueles olhos azuis glaciais pareciam ainda maiores naquela manhã. – Bom dia, minha filha, e bom trabalho.
- Vai com Deus, seu Tomas.
Cida entrou no casarão, e o som da porta reverberou pelas paredes velhas e as janelas frouxas. Ela foi até a cozinha, pegou uma xícara de café, vestiu o avental e foi até o corredor que dava para a sala de estar, de onde se ouvia o som alto da televisão.
-Caiu da cama, dona Helena?
-Xiu! –Censurou a patroa, estendendo o braço até a mesinha ao lado do sofá e pegando o cigarro do cinzeiro já cheio.

Cinco quartos, dois andares, dois banheiros, duas salas, uma cozinha, e um quintal imenso que se comunicava com o jardim da frente por ambos os lados – o casarão era imenso, com um pé direito alto como não se vê há tempos. Cida era corpulenta, com braços fortes e ancas largas, cinco filhos, 35 anos e um marido que há muito não via. O casa era trabalho para no mínimo duas pessoas, mas, além de precisar muito do emprego, ela se afeiçoara aos patrões e não pensava em sair dali tão cedo, por mais que dona Helena pudesse ser... Caprichosa.
-Cida, meu chá, por favor.
A patroa ficava na sala de estar a maior parte do tempo, vendo televisão. Com um braço em riste ao lado dos cabelos castanhos cuidadosamente penteados, ela permanecia no sofá por horas a fio, quieta e compenetrada como um felino.
-Cida, mais açúcar, por favor.
Ela sorvia cada cigarro como se fosse o seu último – ou melhor, como se fosse o primeiro, com uma ânsia genuína. Por vezes ele fechava os olhos para apreciar melhor o trago, deixando a fumaça sair por conta própria de sua boca; não era raro vê-la aproveitar a brasa de uma bituca para acender o próximo. Dona Helena fumava uma dessas marcas antigas, uns cigarros compridos e finos, e no começo Cida não podia deixar de se lembrar de quando era pequena e suas tias fumavam a mesma marca, na casa de sua avó. Às vezes Cida encontrava a patroa com um olhar perdido sabe-se lá deus onde, blasé como as divas dos anos 50.
-Cida, por favor, não me faça pedir de novo.
Embora a criação de dona Helena a impedisse de manter qualquer laço afetivo com a criadagem, em certos dias a patroa levantava-se do sofá e, vestindo suas melhores joias e melhores roupas – que ela mesma confeccionava – ela ia para a cozinha ou onde quer que Cida estivesse e se punha a conversar.
Ou melhor, a falar.
Dona Helena explicava o que vinha acontecendo nas cinco novelas que seguia e na reprise da tarde, comentando de modo entusiasmado o que os vilões aprontaram e o martírio do casal de protagonistas.
-É mesmo? –concordava Cida, preparando a salada.
Muitas vezes ela comentava os noticiários do dia, mostrando-se indignada com a política atual e as barbaridades do mundo moderno, as descobertas da medicina, a pouca-vergonha das celebridades. E ainda que ela se esforçasse para se mostrar totalmente atualizada e por dentro da vida fora daquele casarão, sua mente a traía e Cida percebia a perplexidade e a solidão de alguém que não tinha ideia do que estava acontecendo no mundo, o desamparo e a ansiedade de quem precisa discutir a realidade para ter certeza que, de fato, ela é real.
-Minha nossa! Comentava Cida, varrendo a sala de jantar.
Por vezes ela falava das roupas que costurava para si mesma - seguindo as dicas mais quentes dos programas vespertinos e as tendências das moda – e do minucioso ritual de beleza que realizava todo santo dia: os cremes para as mãos e para os pés, os hidratantes, os exercícios faciais, o intrincado penteado, as unhas sempre impecáveis, a maquiagem sempre imaculada, a precisão das borrifadas de perfume francês, os longos e silenciosos banhos de banheira.
-Que trabalheira, dona Helena! – Exclamava a empregada, colocando a roupa suja de molho e tentando imaginar quantas vezes ela já ouvira aquele mesmo discurso.
Mas na maioria dos dias ela apenas existia na frente da TV, ou então ficava observando o movimento na rua pela janela do quarto, entre as cortinas, erguendo e abaixando o cigarro mecanicamente.

Claro que Cida estranhara de início. Ela trabalhava na casa paroquial quando o padre Josué lhe pediu um favor.
- Por mais que me doa perder minha fiel ajudante, gostaria que você considerasse trabalhar na casa do seu Tomas, ele está precisando de uma empregada.
-O dono da loja de armarinhos?
-Ele mesmo. Mas a situação dele é um tanto quanto... Delicada. Sabe Cida, essa cidade é muito pequena e o povo fala demais. Então mesmo que você não aceite, peço descrição total e absoluta. Tenho a sensação de que você é uma pessoa iluminada e que vai saber lidar com a natureza... Digamos inusitada em que se encontra meu grande amigo, o seu Tomas, e a esposa dele.
-Espera, esposa? Ele não é viúvo?
_Então...
Naquela mesma tarde, Cida entrou na minúscula loja de armarinhos e fingiu olhar a prateleira de novelos de lã enquanto seu Tomas atendia uma freguesa.
-Dona Hortência, a senhora não vai se arrepender de comprar esse tecido. Sente só a maciez, a resistência. É um artigo de muito boa qualidade – e não solta tinta na hora de lavar...
Um artigo de muito boa qualidade. A frase tinha uma respeitabilidade quase nostálgica, uma sensação de aconchego que pegou Cida de surpresa – foi praticamente uma revelação, um momento de comunhão com o destino. E quando dona Hortência saiu da loja e seu Tomas virou-se para ela abrindo o sorriso mais acolhedor que ela já vira, ela soube que não poderia recusar o emprego.
Nas últimas semanas dona Helena vinha se comportando de forma estranha e, por mais que Cida soubesse o porquê de seu estado agitado e quase febril, aquilo ainda a preocupava.
Quando ela começara a falar sozinha, Cida chegou mesmo a ficar aliviada – era um descanso para seus ouvidos, e suas amigas viviam lhe contando das patroas que abriam o coração para as samambaias ou que davam sermões no gato quando não tinham coragem de gritar com o marido. O problema surgiu quando Dona Helena começou a discutir com os personagens das novelas. Eram lapsos breves; a patroa logo reparava no que estava fazendo e se recompunha. Mas ela chegara a passar dias inteiros comportando-se de forma teatral e afetada, e só voltava a si quando ouvia as janelas e a cristaleira da sala tremer quando o marido voltava da rua.
É por isso que os condenados a prisão perpétua viram pastores, fazem cursos à distância ou qualquer outra coisa que ocupe a mente deles, refletia Cida com tristeza. Senão eles ficam loucos. “Mente vazia, oficina do diabo”- assim como o Senhor, o Coisa Ruim opera de formas estranhas e misteriosas. E naquele casarão vazio e solitário, não era de se espantar que uma pessoa na condição de dona Helena se perdesse em seu próprio mundinho... Quando menos percebia, Cida também estava murmurando com o próprio reflexo na mesa de carvalho recém-polida.
A patroa estava particularmente inquieta naquele dia. Depois do programa matinal, ela passara a manhã toda experimentando combinações de vestidos, sapatos e acessórios, fazendo poses na frente do espelho. No fim da tarde, ela surpreendeu Cida com uma pergunta:
-Estou bonita?
Cida virou-se e a observou, sorrindo. O vestido champanhe criava o contraste perfeito com a pele rosada e sedosa de dona Helena, lisa como a de uma boneca de porcelana. Os pés delicados calçavam um Scarpin elegantíssimo, combinando com o colar de rubi que adornava seu colo alvo e que quase alcançava seus seios firmes e pequenos. Os cabelos curtos e penteados deixavam à mostra o par de pérolas dos brincos. Ainda assim, dona Helena mordia o lábio inferior e esperava pela resposta da empregada, insegura como uma menina.
-Mas assim a senhora vai matar o seu Tomas do coração! Está uma princesa, como sempre. –Disse Cida, balançando a cabeça e rindo.
-Bondade sua. Ah, agora o mais difícil, a maquiagem! Como eu vou esconder esses malditos pés de galinha? – Exclamou a patroa enquanto subia apressada as escadas.
-Como sempre... -Repetiu Cida em voz baixa.

Quando Cida finalmente entendera a “situação delicada” de dona Helena, já era tarde demais para ficar com espantada.
A princípio, aquele parecia ser mais um caso de uma moça de 27 anos mimada e superficial sendo sustentada por um namorado (bem) mais velho. Mas algo não se encaixava. Além dos detalhes rotineiros estranhos, ele não parecia ser o tipo de homem que viveria em uma situação daquelas. Seu Tomas era um homem simples e direito, e Cida quase nunca se enganava com as pessoas.
-Quando nos conhecemos, eu tinha 18 anos e ela 25, e foi amor à primeira vista, minha filha, por mais piegas que isso possa parecer. Bom, naquela época não era. – Explicou Seu Tomas certa manhã. A verdade estava tornando-se tão óbvia que teria sido uma falta de respeito não revela-la de uma vez, segundo ele. – E naquela época também ela já estava passando da idade de se casar, você sabe como é. Pois bem, depois de dois anos de noivado nós juntamos os trapos. A Helena sempre foi deslumbrante, Cida. Deslumbrante e linda. E sempre foi meio que desse jeito, sabe? Elétrica e animada, expansiva... Bem, algumas coisas mudam com o tempo...
O olhar dele vagou por um tempo, pesaroso.
-Mas o que ela tinha de linda também tinha de insegura. Seus ataques de ciúmes eram devastadores. Eram os nervos, diziam os médicos. “Histérica”. E os medos dela foram piorando cada vez mais... E uma noite eu cheguei em casa e a encontrei na banheira... -Ele encarava Cida, mas seu olhar ainda estava perdido nas memórias, em silêncio.
-Ela não pode saber que você sabe da verdade, Cida. Ninguém pode. Isso a destruiria de vez, e eu a amo tanto que... Não sei se suportaria vê-la pior.
-O senhor sabe que não tem culpa de nada, não é? – Disse Cida em voz baixa.
-Sei. Mas ela se transformou nisso que ela é hoje por minha causa, não há como negar. Esse fato vai me assombrar para sempre, minha filha... As assombrações não são exatamente como a gente pensa que elas são. – Seu Tomas arqueou uma sobrancelha e riu de soslaio.
Cida não pode fazer nada senão suspirar fundo e jurar que jamais tocaria no assunto.
-E já que estamos falando de assuntos delicados, o senhor vai me entender se eu pedir um aumento, não é?

Mas isso fora há cinco anos, e há muito tempo.
Cida dava os toques finais na mesa de jantar para dois, enquanto Dona Helena tentava escolher os castiçais que melhor combinavam com a toalha de renda.
-Não se esqueça de esvaziar os cinzeiros antes de ir embora, Cida. Pode ir mais cedo, hoje.
_Obrigada, dona Helena, pode deixar. – Cida pensou em parabenizar a patroa, mas achou melhor não.
Na cozinha, ela encontrou seu Tomas chegando do trabalho, com o paletó dobrado sobre o braço direito e carregando uma caixa de confeitaria.
-Quer ajuda?
-Não, minha filha, obrigado. É uma torta de chocolate, a preferida dela. Guardo um pedaço para você.
Será que os olhos dele sempre brilharam assim quando ele falava dela? Pensou Cida.
-Seu Tomas, o senhor não existe! Homens como o senhor são um artigo em falta no mercado...
Ele riu todo acanhado, como um menino, e ela o abraçou.
-Parabéns. Não é todo dia que se faz 40 anos de casado.
-Obrigado, minha filha. Boa noite.
Quando estava indo embora, Cida espiou pela porta do corredor e viu dona Helena abraçada ao seu Tomas, chorando. Pela primeira vez ela viu a patroa como uma velinha: pequena, frágil, débil até, os ombros curvados sacudindo com os soluços. Seu Tomas então levantou o rosto da esposa e limpou suas lágrimas, sussurrando alguma coisa.
Não é à toa que dona Helena se espantava com o que via na TV, pensou Cida enquanto esperava no ônibus. Aliás, não é à toa que o mundo está do jeito que está – o amor que está em falta por aí estava concentrado naquele par de olhos azuis.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Conto: Três putas velhas



- Esta vendo as manchas de sangue? Está vendo? – Alex abraça o primo e aponta o dedo direito para o ônibus no meio do canavial. A caveira de ferro do anel, quase totalmente preta pela oxidação, escorrega para o lado e me encara, sem olhos.
Eu acendo um cigarro, dou três tragos que me amargam a garganta e o passo para Mateus. Aquelas são manchas de ferrugem, mas à noite e sob a luz inquieta da queimada elas parecem feridas abertas.
Roni estende a mão, pedindo um trago. Mateus limpa algumas cinzas que pousaram sobre o ombro, acende um baseado na brasa e passa o cigarro para o amigo. Estamos os três encostados na caminhonete do meu pai observando o fogo alto e imponente que devora a lavoura de cana lá embaixo, no gigantesco terreno que circunda o morro onde estacionamos. Um vento quente e fumacento sopra contra nós, mas ninguém reclama.
Atrás de nós outra caminhonete chega pela estrada de terra que leva à cidade. A música alta a anuncia, e uma nuvem de poeira encobre seus rastros. Três caras e uma menina que eu nunca vi na vida pulam da caçamba, e mais dois amigos do primo de Alex. Eles tiram uma imensa caixa térmica dali e Alex os abraça também, dando socos e empurrões.
- É hoje, meus caros! É hoje! – Alex abre uma lata de cerveja e a ergue em direção às chamas do canavial, uivando. – É hoje!
Da cabine descem Lívia e o namorado, e eu sinto um misto de nostalgia e irritação revirar-me o estômago. Eles nos abraçam e cumprimentam com as frases que sempre falamos nos nossos encontros cada vez mais raros: “E aí, sumidos?”, “Quanto tempo, hein?”, “Tou só o pó, trabalhando demais”, etc.
- E pensar que um ano atrás era ela quem estaria entornando a vodca na goela desses moleques. – Roni comenta de canto, e Mateus o cutuca com o cotovelo.
- Não começa, Roni. – Adverte, segurando a fumaça.
Mas ele está certo. Nós três sabemos.
Em cima do capô, Alex derrama a vodca barata na boca dos três caras, que não passam dos dezoito anos. O último gole é dele, generoso, antes de arremessar a garrafa. Alto, com os cabelos castanhos levemente ondulados até os ombros e olhos azuis, Alex seria o Jesus Cristo perfeito para uma encenação de páscoa, o genro perfeito disputado pelas carolas – se sua magreza, o rosto sulcado e a pele verruguenta não fosse fruto das drogas. Com trinta e dois anos nas costas, ele ainda se veste e se comporta como vocalista da banda punk que tivera quinze anos atrás. O primo e os amigos são da segunda geração a se encantar por ele; Mateus, Roni, Lívia e eu éramos da primeira, mais inocente e deslumbrada do que lisérgica.
A primeira de muitas, aparentemente.
As cinzas começam a cair sobre nós. Primeiro esparsas, ciscos de um cinza claro, frágeis e quebradiços. Depois maiores, de um preto fosco, fazendo a gente ter consciência de que alguma coisa de fato foi queimada. Amanhã a nossa querida cidadezinha – trinta mil habitantes, dois prédios e um semáforo – amanhecerá cheia dessa fuligem nos quintais, nas pracinhas, nas ruas e nos para-brisas. As pessoas andarão indiferentes aos pequenos redemoinhos de vento brincando com a sujeira e a fina névoa insistente. A impressão é a de uma cidade fantasma, sendo eternamente purgada por essa neve tóxica e inconspícua. Eu vou observar as pessoas e o dia seguindo seu fluxo, como se fosse o único que realmente pode enxergar as cinzas e senti-las entupindo meus pulmões. Meu mal é reparar demais nas coisas, é uma merda.
Animais, plantas, veículos, corpos, lixo, crianças. É infindável a lista de coisas que podem ser consumidas pelo canavial.
-E aí, vai rolar ou não? A gente precisa acordar cedo amanhã, né mô? – Reclama Lívia, e eu reviro os olhos e encaro Mateus, que já está bem longe daqui. Nós também precisamos, penso, mas apenas balanço a cabeça para ela, em acordo. O namorado dela solta um “Hu hum” enquanto toma um gole de refrigerante. Ela prende o cabelo loiro e comprido e reclama do calor para mim, abanando o rosto com a mão, mas eu me viro e vou pegar uma cerveja. Ela está certa, mas eu me recuso a concordar. Me recuso.
- Muito bem, senhoras e senhores! – Diz Alex abrindo os braços na nossa frente. O fogo e a fumaça ao fundo se confunde com a jaqueta de couro e a camiseta de rock, dando a impressão de um Croma Key mal feito dos programas do começo dos anos 90, os braços e a cabeça sem um corpo. O apresentador cheirado e bêbado continua. – Vamos dar início à cerimônia voltando um pouco no tempo. Através desse canavial passava uma estrada de terra, por onde os ônibus escolares trafegavam para levar e trazer as criancinhas da zona rural – ônibus como aquele.
Ele aponta teatralmente para a carcaça semiescondida na plantação, e seus novos pupilos o observam, quietos. Roni e eu nos olhamos e seguramos a risada. A performance de Alex fica cada vez melhor.
- Há cerca de quinze anos, em um fim de tarde chuvoso, um ônibus acabou perdendo a direção e bateu de frente com um caminhão carregado de óleo que vinha da usina e bum! Explodiu. Todos morreram – os dois motoristas e as quarenta crianças.
- Não eram vinte? – Cochicha Roni.
- E porque que só o ônibus ficou abandonado ali...? – Comenta Mateus.
Alex olha de esguelha para eles em sua pausa dramática, fuzilando-os com o olhar – algo desnecessário, pois o showman já fisgou sua plateia.
- Um capataz que vivia ali por perto ouviu o acidente, mas por causa da chuva muito forte e por não ter carro ou telefone acabou não podendo fazer nada. Ele foi obrigado a ouvir as crianças gritarem enquanto eram queimadas vivas. No dia seguinte encontraram-no vagando pelo canavial, sem falar coisa com coisa e chamando pelas almas penadas. Vocês sabem quem ele é né? O Tião Marrento, aquele mendigo louco que brigava com todo mundo na rua e foi atropelado pelo trem no ano passado.
O trio balança a cabeça, e um deles cochicha um “pode crer”. De todos os causos e fantasmas que assombram a cidade, esse talvez seja o mais legítimo. Logo Alex também entrará para o rol de personagens daqui, uma lenda viva a ameaçar a moral e os bons costumes da juventude. Algumas coisas nunca mudam, enquanto que outras...
Eu olho para Roni, que tenta inutilmente achar um sinal para o celular. A gente se conheceu no prédio em que Mateus e eu morávamos. Uma tarde nós descemos para brincar na garagem e lá estava ele, sentado em silêncio olhando para o vão dos apartamentos, ouvindo os barulhos de domingo: o tilintar dos pratos do almoço que sempre atrasava, as discussões, as risadas, o futebol na televisão. Roni se mudara com a mãe e o namorado novo dela, que passavam o tempo livre discutindo e bebendo na sala ou trancados no quarto. Ele nunca comentou nada, mas eu sabia que as horas que ele passava ali com o pescoço dolorido e a cabeça tombada para trás era o que ele conhecia de uma vida familiar. É o tipo de coisa que não precisa ou não deve ser dita; os três estavam preocupados demais em brincar para pensar nisso. Roni e eu fizemos faculdade e moramos na mesma cidade agora, e quando nos vemos também não nos apegamos a fatos ruins; sei que ele está sofrendo por causa da namorada que o deixou e que o novo chefe está lhe tirando o sono, mas enfim, estamos sempre preocupados demais em matar a saudade para falarmos disso.
Mateus e eu praticamente nascemos juntos. Enquanto Roni e eu éramos os baixinhos encrenqueiros, ele era o gigante de bom coração e sem tempo quente que acabava nos defendendo e brigando pela gente quando arrumávamos confusão. Ele morou em São Paulo por um ano enquanto estudava e fazia parte de um time semiprofissional de basquete, mas a morte da irmã o fez largar tudo e voltar a morar com a família, trabalhando no escritório do pai. Jéssica tinha um tipo raro de leucemia e em um fim de semana que os pais foram ver o filho jogar na capital, ela fora internada às pressas e morreu depois de alguns dias. Mateus se culpava, a mãe se culpava, os avós culpavam o hospital e o pai não culpava ninguém, exceto Deus; todos procuravam um culpado para não encararem o fato de que coisas ruins acontecem com pessoas boas, e vice-versa. É a vida, ponto final. Fim. Sem explicação ou lição. Mateus nunca toca no assunto e diz levar tudo numa boa, que tudo está bem agora. Mas a quantidade de maconha que ele passou a fumar me diz o contrário. Enfim, outro fantasma que ninguém quer exorcizar.
E Lívia... Bem, nos últimos anos fomos os melhores amigos que já existiram.
- Ninguém nunca usou o terreno por respeito e por medo, pois dizem                que o lugar é assombrado até hoje pelas criancinhas que brincam de esconde-esconde por ali. Mas como a usina foi vendida e, como vocês veem, os negócios estão prosperando...
- Não enrola. – Reclama Lívia em voz baixa batendo o pé, para a minha irritação. A blusinha rosa claro e o jeans cheio de brilho chegam a ser uma afronta, quase um insulto pessoal se comparados com as roupas que ela vestia antes. Eu tento não entrar em paranoias, e respiro fundo.
- ...E essa é a última chance de vocês participarem dessa tradição. Meus camaradas, vocês vão correr até o ônibus e pegar um pedaço do estofado do último banco de passageiros, poltrona 42. Mas rápido, pois o fogo não vai demorar para alcançar o busão.
Eu olho para o pedaço de estofado velho e amarelado que retiro do bolso, esfarelando-se. Mateus e Roni fazem o mesmo.
- Na boa gente, já deu a hora. Beijos para quem fica. – Diz Lívia depois de um bocejo, acenando para nós. Alex dá de ombros e volta a falar com os garotos. O casal entra na caminhonete e parte de vagar, deixando uma nuvem baixa da poeira marrom – até isso é sem graça neles, meu Deus.E então algo explode dentro de mim, o ápice de uma discussão acalorada que nunca aconteceu.
- Sabe o que mais me irrita? É a prepotência e a arrogância dela. Só porque ela está praticamente casada com aquele playboyzinho sertanejo e levando a vidinha casa-trabalho burguesa com o “mô”, ela se acha totalmente superior aos outros. E não é nem o fato dela estar pagando a língua sobre praticamente tudo o que ela já disse sobre relacionamentos (Roni concorda com a cabeça, pensativo), mas a hipocrisia. Há um ano ela era a mina mais descolada da cidade, a que todas invejavam e queriam ser amigas, bebendo e curtindo como se não houvesse amanhã. Foi só começar a namorar e pronto: começou a agir como se estivesse casada há dez anos, com um discurso medíocre e moralista, machista até – enfim, o de uma dona-de-casa. Pensando bem, acho que ela sempre pensou assim, foi só a máscara que caiu.
- Cara, todos nós já fomos mais animados. – Argumenta Roni.
- Eu sei, eu sei... – Concordo, respirando. – A gente cresce, muda, vai ficando mais velho... Mas ela se agarrou nessa vidinha e se vangloria como se nada mais fosse melhor, como se a gente fosse inferior. – Eu olho para a fumaça densa no céu, perplexo com a minha própria confissão. – Isso não é amadurecer, isso é se esconder.
- Tipo quem para de fumar, mas dá uns tragos quando bebe, e reclama de quem fuma? – Mateus me acusa com um sorriso de canto e os olhinhos vermelhos e baixos, mas ainda brincalhões, e ele me desarma. Eu abraço a cintura dele, e ele encosta a cabeça sobre a minha, me abraçando também. Eu queria dizer para ele nunca mudar, para continuar com aquele sorriso largo e inocente para sempre; queria dizer o quanto sentia falta das nossas conversas sobre o nada e as madrugadas filosóficas regadas a vinho e maconha; queria contar o quanto me sentia sozinho e perdido, sem coragem de vislumbrar o futuro; queria dizer que também não suportava as coisas boas que acontecem com as pessoas ruins, que estou ficando tão amargo que nem me reconheço mais. Enfim, eu quero chorar, mas o mundo já tem fantasmas suficientes, e é melhor não tocar nesses assuntos, também.
Então eu me recomponho e encaro o céu. A fumaça está altíssima e cobre a vista, fazendo a paisagem parecer um cenário falso. Tudo parece enfadonho – a garrafa quebrada na areia, Alex, os garotos entornando cerveja e dando gritos e socos uns nos outros para criar coragem, as outras pessoas que eu sequer conheço e que não fazem diferença. Os novatos estão alinhados na beira da encosta, esperando o sinal do mestre.
Roni, Mateus e eu nos levantamos, e instintivamente sabemos que é hora de ir embora.
- Falou, Alex! – Grita Mateus, e nós acenamos.
- Até vocês, suas putas velhas!? Então tá, vacilões! – Grita ele tentando soar bravo, mas a excitação do momento o domina.
Nós rimos e entramos na caminhonete. Somos três putas velhas demais para achar que desastres acontecem só nos causos alheios e nos feriados prolongados – e a noite está pedindo por uma tragédia, com o palco armado atrás da cortina de fumaça.
Eu dou partida e saímos em silêncio, ouvindo a música e as risadas esmaecerem-se e ficarem para trás, até que o vento as abafa por completo. No retrovisor as chamas ardem, implacáveis.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Conto: Dias chuvosos e segundas-feiras sempre me deprimem

- Que patético.
Estou na janela de casa lendo a manchete do dia quando Karen chega de carro e buzina. “Fã tem cabelos grisalhos e 15 tatuagens da cantora Miley Cirus". Eu amasso o jornal e amarro um lenço em volta dos cabelos loiros hermeticamente penteados. É um entardecer chuvoso e frio, mas ainda assim eu visto os óculos de sol. Desse momento em diante, não posso sair em público sem eles.
Karen está brigando com o volume quando entro e cumprimento-a. Uma balada triste dos Carpenters toca no rádio e no mesmo instante eu percebo que ela está no repeat, e me lembro do motivo. A gente vai ficando indiferente a essas coisas com o passar do tempo, vai se acostumando. Suas mãos ossudas tremem quase imperceptivelmente e seus dentes rangem, fazendo seu rosto cadavérico parecer ainda mais magro. Ela sorri para mim.
- Você está linda!
- Obrigada, querida. – Respondo, e ela toma um pílula e um gole do café frio que descansa no porta-copo. Coloco minha bolsa no banco de trás, ao lado de um livro que a mãe dela lhe deu há alguns meses, na vã esperança de ajudá-la. Karen jamais contara à família o verdadeiro motivo por trás de sua doença; eles não entenderiam, e as coisas ficariam ainda piores. Ela poderia inclusive colocar os outros em risco, e Karen morreria se isso acontecesse.
Quase ninguém a entenderia, exceto nós do grupo.
Você é o que você come está escrito na capa.
Deve ser difícil não se sentir um monte de merda quando seu estômago não vê nada substancial há semanas. Karen é uma overdose de café, inibidores de apetite, xenical, quitosana, faseolamina, cloridrato de sibutramina, efedrina, pílulas de emagrecimento e mais alguns outros inibidores de apetite proibidos no país.
Meu estômago ronca, mas eu deixo para abrir o pacote de bolachas que trouxe na bolsa quando chegarmos ao celeiro.

Depois de uma hora, o carro entra em uma estrada de terra, e ao longe vejo o celeiro velho e imponente. A fazenda abandonada é da família do Jota, o fundador do grupo e quem me apresentou a ele há quase um ano, quase que por acidente.
Eu havia acabado de me formar em canto. Era minha segunda faculdade e, como qualquer publicitária insatisfeita ou cantora em ascensão, estava desempregada. Meus dias e minhas noites se misturavam conforme eu mandava currículos pela internet e ia a algumas entrevistas de emprego, em uma cidade grande e cara para onde eu me mudara em busca de novos ares e não conhecia ninguém - um clichê de artista amargurado que foi se tornando ridículo e insuportável conforme as contas começaram a se acumular embaixo da porta. As oportunidades para cantar eram tão ruins quanto esparsas, mas suficientes para colocar qualquer sonho ou força de vontade em perspectiva.
Eu conheci o Jota quando comprei por um site um pôster do filme Quanto mais quente melhor, de 1959, por uma pechincha. Estava precisando de um mimo, afinal de contas. Ele disse que morávamos perto, e que poderia levar o cartaz em casa sem problemas, se eu não me importasse. Na época eu não saía de casa há seis dias, e não conversava com ninguém há oito. Não, eu não me importava.
Ao abrir a porta, me deparei com um sujeito de cabelos castanhos sujos na altura das orelhas, com um cavanhaque, sandálias franciscanas e uma camiseta do The Cure. Aos 26 anos, ele finalmente estava saindo da casa dos pais e tinha tantos cartazes de filmes e bandas e tão pouco dinheiro que seu quarto-sala recém-alugado parecia “uma sessão de filmes pornôs de uma locadora, cheia de pôsteres de lançamentos ultrapassados forrando as paredes e colados uns sobre os outros, disputando espaço e atenção”, nas próprias palavras dele.
- Sabia que eles fazem isso para aliviar a tensão e a culpa de você estar escolhendo entre um gang-bang inter-racial e o filme de uma celebridade decadente, por exemplo, ao lado de desconhecidos?
Não, eu não sabia.
Quando ele viu meus olhos brilharem ao reparar no longo tubo de papelão que ele trazia debaixo do braço, ele soube que eu era uma deles.
- Você é fã dela, não é? Digo, da Marilyn. Acho que você vai gostar do...clube que eu fundei.
- Um fã clube? Perguntei.
Minha admiração por Marylin Monroe começou cedo, assistindo e reassistindo as fitas de VHS que minha avó tinha. Era uma bela coleção; Dona Júlia passou boa parte da vida dedicando seu tempo livre às revistas de fofocas e aos filmes da bombshell, e quando fez setenta anos, ganhou de meu pai uma coleção dos clássicos da loira e um videocassete. Eu passava as tardes na casa dela depois da escola, e nós encenávamos as cenas mais divertidas e nos maquiávamos, e ríamos até não poder mais. Em seus últimos anos de vida, já bastante debilitada pelo Alzheimer, dona Júlia mal se lembrava quem eu ou meu avô éramos, mas ela ainda citava de cor suas cenas preferidas. E quando a lucidez ameaçava voltar, fazendo-a ter uma crise de depressão por não ter ideia do que estava fazendo ou se seus pais ainda estavam vivos, eu me vestia e me maquiava e cantava para ela, e juntas nos perdíamos nas lembranças (inventadas ou reais) dos tempos dourados de Hollywood. Ela era Marylin, e eu Joan Crawford ou Bette Davis, e juntas reclamávamos do assédio da imprensa e suspirávamos por Montgomery Clift.
- Não exatamente Digamos que meu “clube” seja a forma mais perfeita e extrema de se homenagear algum artista que você ama. E por isso mesmo, é um "clube" bem exclusivo. Se você me permitir continuar, peço apenas a total e absoluta discrição. Senão, vou ser obrigado a te matar. – Ele riu e eu esperei que ele fizesse de novo as aspas com as mãos, mas ele não as fez.
Sentada na minha sala, assisti muda a explicação de Jota. Horas pareceram se passar, mas a paixão e a certeza dele eram contagiantes e dariam consistência até à mais insana das ideias. Pessoas descoladas tem um jeito peculiar de fazer você se sentir um idiota se não concordar com elas. Os descolados e os loucos. Mas mesmo assim, quando ele foi embora, eu fechei a porta jurando nunca mais pensar no assunto, pois já tinha problemas suficientes.
Um mês depois, meu cabelo estava platinado.
Karen estaciona junto aos outros carros, na parte lateral do celeiro. Jota está conversando com Diana e James, enquanto os três analisam um carro preto que James usará ainda este ano, e que ela provavelmente usará no ano que vem, dependendo do estado em que ele ficar. Os três acenam para nós, e nós acenamos de volta. O sol está terminando de se por, e o tom azulado da escuridão é quebrado por uma luz amarela de um poste.
Nós adentramos o celeiro transformado em um aconchegante e rústico pub. Rostos famosos decoram cada centímetro quadrado das paredes, sorrindo para nós. Outros já chegaram e estão sentados nas mesinhas ao redor do palco ou no bar, onde nos sentamos. Ao nosso lado, dois sujeitos discutem calorosamente literatura e o sentido da vida – um velhote gorducho com uma cerveja na mão, e outro um pouco mais jovem, com um cigarro fedorento.
- Olha, Buck, você precisa entender que a vida não tem sentido algum antes e independentemente do fato do homem viver. O valor da vida é o sentido que cada homem escolhe para si mesmo.
O outro bate na mesa e ri, balançando a cabeça, antes de acender um cigarro. Karen revira os olhos e me puxa para uma mesa.
- Já te contaram como aquele outro fez para ficar vesgo? Ele pegou um...
Andy, um adolescente vestido de preto e com o cabelo descolorido e cortado em tigelinha nos interrompe tirando uma foto minha, de surpresa. O brilho nos cega por alguns segundos, e nós rimos.
A ideia geral é simples, e possui poucas regras. Nesse celeiro, você não só veste e age como o seu ídolo. Você é o seu ídolo. E respeitando algumas limitações de cor, gênero e qualquer casualidade que lhe fuja do controle, você fará qualquer coisa para ser igual ao seu ídolo. Qualquer coisa.
Nós nos sentamos em uma mesa, ao lado do Cazuza. Todos assistem compenetrados ao show de Amy Winehouse. O cara de vinte e poucos anos engole metade das letras e passa a maior parte do tempo bebendo e tentando não desmaiar – e o espetáculo é incrível. Ele deve ter gasto os tufos nas próteses de silicone, nas tatuagens e no cabelo.
Na mesa do outro lado estão os amigos dela, o “grupo dos 27”. Janis, Jim, Hendrix e Curt que, depois dos aplausos, a ajuda a descer.
- Boa noite, damas! – Jota senta-se ao nosso lado. Ele veste um manto branco que lhe chega até às (mesmas) sandálias franciscanas, e seu cabelo já passa dos ombros. – Vai cantar hoje?
-Claro, querido. – Respondo.
- Conseguiu falar com o carinha que eu te falei? – Pergunta Karen.
- Sim. Fui vê-lo tocar semana passada e ainda não tenho certeza se ele é um dos nossos, mas tenho fé. Ele tem só vinte e quatro anos, mas seria perfeito para ficar no meu lugar. O cantor favorito dele é o Nelson Gonçalves, que morreu com...
- 79. Eu sei.
A principal regra desse clube é que não importa quantos anos você tenha - ao chegar na idade exata em que seu ídolo morreu, você tem que se matar. Ou melhor dizendo, você tem que morrer da mesma forma que ele.

A palavra é realização. Um comprometimento que de alguma forma preenche um vazio dentro de você que nenhuma outra coisa consegue. Uma meta, uma missão. Um sentido. Você passa a viver pensando pura e exclusivamente na roupa que irá usar no próximo encontro; você pesquisa, lê biografias, vê filmes e vídeos na internet; decora entrevistas, estuda o modo de falar, os trejeitos; você come o que eles comiam, usa Chanel Nº5 para dormir (apenas duas gotas) e toma barbitúricos; você termina o dia com a sensação de ter feito algo que realmente importa e vale a pena, e dorme tranquila, sonhando que está cantando para as tropas americanas na Coréia - isso se seu ídolo não sofrer de insônia.
Olha o Elvis ali, saindo do banheiro. Ele ainda não morreu. Aquele cara deve ter uns trinta anos; ainda lhe faltam uns doze para ser encontrado morto por um ataque cardíaco em sua casa. E se você o visse por aí, em seu local de trabalho ou na rua, jamais imaginaria a satisfação que lhe preenche o peito. Você nos vê empacotando suas compras ou rasgando seu ingresso na entrada do cinema, cabisbaixos; falando sozinhos no ônibus; chegando em casa depois de trabalhar em um emprego medíocre, com um saco de ração de gatos e uma garrafa de vinho; você nos ouve no telefone, tentando vender uma apólice de seguros ou um consórcio de automóveis; você nos dá gorjetas ao entrar e sair dos hotéis e dos táxis, ou ainda nos joga uma moeda na rua, enquanto ensaiamos algum número para a apresentação da noite – não importa, as possibilidades são imensas. Talvez você até trabalhe para o Chico Xavier ou seja inquilino da Clarice Lispector, mas jamais saberá.
Aqui não precisamos ser nós mesmos ou o que a sociedade quer. Aqui, nós podemos ser quem a gente quiser.
Karen engole outra pílula.
Frank Sinatra termina seu número e desce do palco, ao som das palmas. Eu me olho no espelhinho de bolso uma última vez antes do meu nome ser anunciado.
Quando me levanto, Karen já está de pé, perto da porta. As coisas são assim por aqui, ninguém sabe o que vai acontecer amanhã, dia 03 de agosto. Para nós, ela está indo embora mais cedo por não estar se sentindo bem ou por ter um compromisso.
Sinto uma ponta de tristeza, não pelo o que vai acontecer, ou porque estou vendo pela última vez uma das poucas amigas de verdade que já tive na vida – mas porque amanhã nos jornais eu provavelmente vou descobrir quem ela realmente é.
Uma professora infantil.
Uma bancária.
Uma poetisa tímida demais para declamar seus textos.
Uma artista plástica.
Uma empregada.
Uma mãe.
Karen dá uma última olhada ao redor, acena para Jota e sai como sempre viveu – sorrindo e com os olhos grandes e melancólicos baixos.
Jota anuncia meu nome e eu respiro fundo. Há uma enorme cruz de madeira no fundo do palco e, de onde estou, vejo-o abrir os braços ao som dos aplausos e imagino por um segundo que ele já está crucificado, como estará daqui a seis anos nesse mesmo palco. Então eu caminho até o microfone, sorrindo. A luz do holofote me cega de início, mas tanto faz.
É a minha hora de brilhar.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Conto: Uma visita inesperada


Carolina desceu o caminho de pedras que levava da enorme casa de campo para a casinha de bonecas, que ficava nos fundos. Ela vinha nas pontas dos pés e com um braço erguido, como se segurasse com um cigarro. A berrante construção de madeira cor-de-rosa destacava-se dos tons de verde da floresta que circundava a propriedade e do lago, a alguns metros, com sua superfície acinzentada quase imaculada. A manhã estava nublada e fria.
- Mariana, minha querida! Você não imagina como estava o trânsito. – Falava a menina de forma afetada. Ao chegar na frente da casa, Carolina bateu na porta.
- Carol, mas que surpresa! – Recebeu a amiga, com um copo de Martini de plástico cheio de suco. Ela arrumou os cachos loiros com a outra mão e convidou a visita para entrar.
Carolina tinha seis anos e Mariana, cinco.
A menina cumprimentou a anfitriã com um beijo em casa bochecha, retirou a bolsa de lantejoulas e a pôs em uma estante abarrotada de ursinhos e brinquedos.
- Meus pais mandaram um beijo. Eles estão lá em cima com... – Ao se virar, Carolina se deparou com uma visão inusitada, sentada na mesinha de plástico lilás. Por um segundo ela não soube o que pensar, voltando à suas feições e características infantis. Era o tipo de pessoa que ela não esperava encontrar em um “evento desse nível” (como falava sua mãe), e muito menos a sós com a amiga. Ela a estudou com cautela, tomando cuidado para não demonstrar a surpresa e a decepção – que estavam estampadas em seus olhos grandes e azuis. Ela esperava encontrar outras primas e colegas de sua melhor amiga, mas nunca um...
- Oi. _disse o menino sorridente.
- Ah, esse é o meu novo amigo. Essa é a Carol.
- Oi. – A menina sentou-se do outro lado da mesa, e ficou observando o lago, pela janelinha. A música abafada da casa de campo chegava até eles de vez em quando, trazida pelo vento. Ela lançava olhares nervosos para a amiga, que colocava bolachas e canapés em pratinhos roxos (combinando com seu avental cheio de pôneis) e mexia nas panelas de brinquedo, e para o menino – que lhe parecia um tanto... Diferente.
Uma fina neblina pairava sobre o lago, desfazendo-se à medida que o sol saía por detrás das pesadas nuvens. A superfície da água parecia fundir-se com o vapor e o céu cinza, no horizonte.
Carolina tirou as luvas (roxas) e o cachecol xadrez, e reparou na blusa longa e escura que o menino usava, de um tecido grosso e rústico (pobre). A gola lhe tampava o pescoço e quase alcançava seu queixo, e um gorro preto.
-Tá com frio? -Perguntou a garota.
O menino balançou a cabeça, com o mesmo sorriso líneo.
-Tendi. Ãhm... Seus pais também estão na festa do tio e da tia?
-Não. Eu moro aqui perto, e daí resolvi vim brincar com vocês.
Sozinho? Pensou Carolina, mas sua amiga já vinha do outro lado da pequena cabana, com os petiscos.
-Não é legal? Eu queria morar aqui também! E não ter que voltar pra cidade, pra escola...
-Ah, escola é uma droga! – comentou o menino, com a voz baixa, ao que as duas concordaram e riram.
-Ele tava me falando que morar por aqui é muito legal! Que ele e os amigos dele brincam o dia todo na floresta! – Os olhos da menina cintilavam. – Meus pais nunca me deixam ir na floresta, né Carol?...
-Ai, eu ia morrer de medo! – disse Carolina, rindo.
-Que nada, é super legal!
-Mari, olha o meu novo celular. – Carolina retirou o IPhone do bolso. Ele é cheio de joguinhos, tem internet...
-Eu pedi um desses pra minha mãe, mas ela disse que eu sou muito nova pra ele, af! Você tem iPhone?
-Um o que? –perguntou o menino, observando o celular sobre a mesa. Ele olhava desconfiado para o aparelho. -Ah, não, é meus pais também não me deixam ter um, af!
Carolina notou o tom o desconforto do garoto, e tinha quase certeza que era a primeira vez que ele dizia aquela gíria. Seu tom não era natural; era forçado, descabido – aliás, como o próprio menino, que não parecia se encaixar naquela situação. Meninos... af!I Pensou a garota.
-Como você se_
-E aí, a gente vai brincar de quê? – o menino interrompeu Carolina, olhando ao redor da cabana.
-De casinha, ué! Olha a comidinha!
-Ah, não isso é coisa de menina! Vamos brincar de esconde-esconde, lá fora!
-Minha mãe não deixa, eu só posso ficar aqui.
-Nem a minha. – completou Carolina, desapontada.
-Ah, tá bom, vai! – disse o menino, rindo.
Mariana então se sentou, e as duas atacaram a comida.

-Coloca mais suco pra gente? E coloca mais açúcar, que ele ainda está amargo, bléh! – Pediu Mariana, fazendo uma careta. Ela foi até o fogão e pegou o smartphone. Vou pedir pra minha mãe trazer refri.
O menino descruzou os braços e despejou o suco de uva nos copos. Para o espanto de Carolina, as pequeninas mãos dele eram curvas e enrugadas, com pelos negros sobre os dedos e unhas amareladas. Ele então tirou um saquinho de pano do bolso e colocou um pó branco nas duas taças, e as empurrou na direção das garotas. Carolina olhou assustada para a amiga, que dava um imenso bocejo.
-Ai, sem sinal! – E coçou os olhos.
Mariana voltou para seu lugar e pôs-se a tagarelar sobre as aulas de balé, as amiguinhas da escola, sobre as roupas que comprara e do cachorro que os pais estavam enrolando para lhe dar, enquanto bebericava o suco. O menino ria baixinho, e concordava com a cabeça. Carolina, porém, ficava cada vez mais tensa à medida que uma sensação ruim crescia dentro de si. Ela não parava de mexer nos cabelos pretos e longos, e sua respiração acelerava-se a cada gole da amiga – que não percebia que estava começando a falar engraçado. Será que a tia sabe que ele está aqui com a gente? O coração dela disparou, e a garota precisou segurar a vontade de chorar.
-Não vai beber o suco, Carol? Agora tá docinho. – comentou Mariana.
-É, Carol, bebe. – disse o menino, cujo sorriso desaparecera, deixando no lugar um rosto magro e sulcado, esboçando o extremo oposto de sua voz suave. Os vincos que se formaram dos lados da boca chamaram a atenção da garota, mas não mais que seus olhos – negros e redondos, quase negros, com um brilho vítreo. Carolina então desviou o olhar.
-Eu vou lá pra cima, Mari.
- Ah, espera! Tem o bolo. – Ao levantar-se, Mariana deu dois passos trôpegos, tentou se segurar em uma cadeira, mas acabou desmaiando.
-Mari! –Carolina ergueu-se com a voz embargada pelo medo, mas ele fora mais rápido. Com o movimento, do bolso de seu casaco caiu um cachimbo de madeira.
Ao ver Carolina acuada em um canto, arfando e com as expressões deformadas anunciando o choro, o menino sorriu, mostrando os dentes podres.
-Se eu fosse você, ficaria bem quietinha.
Quando ele se abaixou para pegar o cachimbo, seu gorro enroscou em um gancho para casacos – revelando uma lustrosa careca e um par de orelhas longas e pontiagudas.
Carolina começou a chorar e a dizer coisas ininteligíveis, mas algumas frases se formaram corretamente entre seus soluços.
-Deixa a gente em paz... Eu quero a minha mãe... MÃE! – o grito finalmente irrompeu de sua garganta.
Ele pulou o corpo de Mariana e agarrou o pescoço da menina com os dedos grossos e ásperos. Seu hálito era forte e pútrido, quente.
-Se não quiser que eu te visite todas as noites, mocinha, é melhor não contar isso para ninguém. Porque eu vou ficar sabendo. Eu vou. Você não imagina como as notícias voam nessa floresta...
Petrificada, a menina já não tinha certeza do que estava acontecendo. Muda, trêmula e sentindo uma estranha calma se apoderar de suas entranhas, Carolina sentiu o coração desacelerar conforme assistia a cena que se desenvolvia diante de seus olhos brilhantes e arregalados, ainda que sem vida, como os de uma boneca.
Ele tinha as pernas curtas arqueadas para os lados, o que fazia com que balançasse o corpo ao andar. Ao levantar o corpo de Mariana em seus braços, ele cheirou o pescoço da menina, esfregando o rosto no dela, e abriu a porta. Pela janelinha, Carolina viu o diminuto homem correr em direção à mata e perder-se na escuridão.

-Oi meninas! Vim ver como se vocês precisam de alguma coisa. – A mãe de Mariana descia o caminho de pedras com um copo de Martini na mão. – Carol, fofa, o que foi?
Carolina estava sentada em um balanço, quietinha, olhando fixamente para a floresta.
Preocupada, a mulher entrou na casinha, para então sair de novo aos gritos.
-Cadê a Mariana!?
Um vento gélido veio de dentro da floresta, uivando. Uma rajada forte, viva e pulsante, fazendo os galhos daquelas árvores centenárias balançarem e suas copas farfalharem, como se falassem, com cuidado para não perturbarem o silêncio quase palpável.
Como se cochichassem.
E em silêncio, Carolina deu impulso com os pés. E balançou também.