Era oito horas da manhã, e a sala já estava esfumaçada.
Cida encontrou seu Tomas quando chegava para trabalhar. A senhor de 70
anos abriu um sorriso que pareceu movimentar todas as rugas de seu rosto, tirou
o chapéu e cumprimentou a empregada.
-Bom dia, Cida!
-Ela já levantou, seu Tomas?
-Já. Não queria perder a entrevista com o autor da novela no programa
da Ana Maria. – O tom dele era debochado, mas as antigas olheiras que garniam
aqueles olhos azuis glaciais pareciam ainda maiores naquela manhã. – Bom dia,
minha filha, e bom trabalho.
- Vai com Deus, seu Tomas.
Cida entrou no casarão, e o som da porta reverberou pelas paredes
velhas e as janelas frouxas. Ela foi até a cozinha, pegou uma xícara de café,
vestiu o avental e foi até o corredor que dava para a sala de estar, de onde se
ouvia o som alto da televisão.
-Caiu da cama, dona Helena?
-Xiu! –Censurou a patroa, estendendo o braço até a mesinha ao lado do
sofá e pegando o cigarro do cinzeiro já cheio.
Cinco quartos, dois andares, dois banheiros, duas salas, uma cozinha,
e um quintal imenso que se comunicava com o jardim da frente por ambos os lados
– o casarão era imenso, com um pé direito alto como não se vê há tempos. Cida
era corpulenta, com braços fortes e ancas largas, cinco filhos, 35 anos e um
marido que há muito não via. O casa era trabalho para no mínimo duas pessoas,
mas, além de precisar muito do emprego, ela se afeiçoara aos patrões e não
pensava em sair dali tão cedo, por mais que dona Helena pudesse ser...
Caprichosa.
-Cida, meu chá, por favor.
A patroa ficava na sala de estar a maior parte do tempo, vendo
televisão. Com um braço em riste ao lado dos cabelos castanhos cuidadosamente
penteados, ela permanecia no sofá por horas a fio, quieta e compenetrada como
um felino.
-Cida, mais açúcar, por favor.
Ela sorvia cada cigarro como se fosse o seu último – ou melhor, como
se fosse o primeiro, com uma ânsia genuína. Por vezes ele fechava os olhos para
apreciar melhor o trago, deixando a fumaça sair por conta própria de sua boca;
não era raro vê-la aproveitar a brasa de uma bituca para acender o próximo.
Dona Helena fumava uma dessas marcas antigas, uns cigarros compridos e finos, e
no começo Cida não podia deixar de se lembrar de quando era pequena e suas tias
fumavam a mesma marca, na casa de sua avó. Às vezes Cida encontrava a patroa
com um olhar perdido sabe-se lá deus onde, blasé
como as divas dos anos 50.
-Cida, por favor, não me faça pedir de novo.
Embora a criação de dona Helena a impedisse de manter qualquer laço
afetivo com a criadagem, em certos dias a patroa levantava-se do sofá e,
vestindo suas melhores joias e melhores roupas – que ela mesma confeccionava –
ela ia para a cozinha ou onde quer que Cida estivesse e se punha a conversar.
Ou melhor, a falar.
Dona Helena explicava o que vinha acontecendo nas cinco novelas que
seguia e na reprise da tarde, comentando de modo entusiasmado o que os vilões
aprontaram e o martírio do casal de protagonistas.
-É mesmo? –concordava Cida, preparando a salada.
Muitas vezes ela comentava os noticiários do dia, mostrando-se
indignada com a política atual e as barbaridades do mundo moderno, as
descobertas da medicina, a pouca-vergonha das celebridades. E ainda que ela se
esforçasse para se mostrar totalmente atualizada e por dentro da vida fora
daquele casarão, sua mente a traía e Cida percebia a perplexidade e a solidão
de alguém que não tinha ideia do que estava acontecendo no mundo, o desamparo e
a ansiedade de quem precisa discutir a realidade para ter certeza que, de fato,
ela é real.
-Minha nossa! Comentava Cida, varrendo a sala de jantar.
Por vezes ela falava das roupas que costurava para si mesma - seguindo
as dicas mais quentes dos programas vespertinos e as tendências das moda – e do
minucioso ritual de beleza que realizava todo santo dia: os cremes para as mãos
e para os pés, os hidratantes, os exercícios faciais, o intrincado penteado, as
unhas sempre impecáveis, a maquiagem sempre imaculada, a precisão das
borrifadas de perfume francês, os longos e silenciosos banhos de banheira.
-Que trabalheira, dona Helena! – Exclamava a empregada, colocando a
roupa suja de molho e tentando imaginar quantas vezes ela já ouvira aquele
mesmo discurso.
Mas na maioria dos dias ela apenas existia na frente da TV, ou então ficava
observando o movimento na rua pela janela do quarto, entre as cortinas,
erguendo e abaixando o cigarro mecanicamente.
Claro que Cida estranhara de início. Ela trabalhava na casa paroquial
quando o padre Josué lhe pediu um favor.
- Por mais que me doa perder minha fiel ajudante, gostaria que você
considerasse trabalhar na casa do seu Tomas, ele está precisando de uma
empregada.
-O dono da loja de armarinhos?
-Ele mesmo. Mas a situação dele é um tanto quanto... Delicada. Sabe
Cida, essa cidade é muito pequena e o povo fala demais. Então mesmo que você
não aceite, peço descrição total e absoluta. Tenho a sensação de que você é uma
pessoa iluminada e que vai saber lidar com a natureza... Digamos inusitada em
que se encontra meu grande amigo, o seu Tomas, e a esposa dele.
-Espera, esposa? Ele não é viúvo?
_Então...
Naquela mesma tarde, Cida entrou na minúscula loja de armarinhos e
fingiu olhar a prateleira de novelos de lã enquanto seu Tomas atendia uma
freguesa.
-Dona Hortência, a senhora não vai se arrepender de comprar esse
tecido. Sente só a maciez, a resistência. É um artigo de muito boa qualidade –
e não solta tinta na hora de lavar...
Um artigo de muito boa
qualidade. A frase tinha uma respeitabilidade quase nostálgica, uma
sensação de aconchego que pegou Cida de surpresa – foi praticamente uma
revelação, um momento de comunhão com o destino. E quando dona Hortência saiu
da loja e seu Tomas virou-se para ela abrindo o sorriso mais acolhedor que ela
já vira, ela soube que não poderia recusar o emprego.
Nas últimas semanas dona Helena vinha se comportando de forma estranha
e, por mais que Cida soubesse o porquê de seu estado agitado e quase febril,
aquilo ainda a preocupava.
Quando ela começara a falar sozinha, Cida chegou mesmo a ficar
aliviada – era um descanso para seus ouvidos, e suas amigas viviam lhe contando
das patroas que abriam o coração para as samambaias ou que davam sermões no
gato quando não tinham coragem de gritar com o marido. O problema surgiu quando
Dona Helena começou a discutir com os personagens das novelas. Eram lapsos
breves; a patroa logo reparava no que estava fazendo e se recompunha. Mas ela
chegara a passar dias inteiros comportando-se de forma teatral e afetada, e só
voltava a si quando ouvia as janelas e a cristaleira da sala tremer quando o
marido voltava da rua.
É por isso que os condenados a prisão perpétua viram pastores, fazem
cursos à distância ou qualquer outra coisa que ocupe a mente deles, refletia
Cida com tristeza. Senão eles ficam loucos. “Mente vazia, oficina do diabo”-
assim como o Senhor, o Coisa Ruim opera de formas estranhas e misteriosas. E
naquele casarão vazio e solitário, não era de se espantar que uma pessoa na
condição de dona Helena se perdesse em seu próprio mundinho... Quando menos
percebia, Cida também estava murmurando com o próprio reflexo na mesa de
carvalho recém-polida.
A patroa estava particularmente inquieta naquele dia. Depois do
programa matinal, ela passara a manhã toda experimentando combinações de
vestidos, sapatos e acessórios, fazendo poses na frente do espelho. No fim da
tarde, ela surpreendeu Cida com uma pergunta:
-Estou bonita?
Cida virou-se e a observou, sorrindo. O vestido champanhe criava o
contraste perfeito com a pele rosada e sedosa de dona Helena, lisa como a de
uma boneca de porcelana. Os pés delicados calçavam um Scarpin elegantíssimo,
combinando com o colar de rubi que adornava seu colo alvo e que quase alcançava
seus seios firmes e pequenos. Os cabelos curtos e penteados deixavam à mostra o
par de pérolas dos brincos. Ainda assim, dona Helena mordia o lábio inferior e
esperava pela resposta da empregada, insegura como uma menina.
-Mas assim a senhora vai matar o seu Tomas do coração! Está uma
princesa, como sempre. –Disse Cida, balançando a cabeça e rindo.
-Bondade sua. Ah, agora o mais difícil, a maquiagem! Como eu vou
esconder esses malditos pés de galinha? – Exclamou a patroa enquanto subia
apressada as escadas.
-Como sempre... -Repetiu Cida em voz baixa.
Quando Cida finalmente entendera a “situação delicada” de dona Helena,
já era tarde demais para ficar com espantada.
A princípio, aquele parecia ser mais um caso de uma moça de 27 anos
mimada e superficial sendo sustentada por um namorado (bem) mais velho. Mas
algo não se encaixava. Além dos detalhes rotineiros estranhos, ele não parecia ser o tipo de homem que
viveria em uma situação daquelas. Seu Tomas era um homem simples e direito, e
Cida quase nunca se enganava com as pessoas.
-Quando nos conhecemos, eu tinha 18 anos e ela 25, e foi amor à
primeira vista, minha filha, por mais piegas que isso possa parecer. Bom,
naquela época não era. – Explicou Seu Tomas certa manhã. A verdade estava
tornando-se tão óbvia que teria sido uma falta de respeito não revela-la de uma
vez, segundo ele. – E naquela época também ela já estava passando da idade de se
casar, você sabe como é. Pois bem, depois de dois anos de noivado nós juntamos
os trapos. A Helena sempre foi deslumbrante, Cida. Deslumbrante e linda. E
sempre foi meio que desse jeito, sabe? Elétrica e animada, expansiva... Bem,
algumas coisas mudam com o tempo...
O olhar dele vagou por um tempo, pesaroso.
-Mas o que ela tinha de linda também tinha de insegura. Seus ataques
de ciúmes eram devastadores. Eram os nervos, diziam os médicos. “Histérica”. E
os medos dela foram piorando cada vez mais... E uma noite eu cheguei em casa e
a encontrei na banheira... -Ele encarava Cida, mas seu olhar ainda estava
perdido nas memórias, em silêncio.
-Ela não pode saber que você sabe da verdade, Cida. Ninguém pode. Isso
a destruiria de vez, e eu a amo tanto que... Não sei se suportaria vê-la pior.
-O senhor sabe que não tem culpa de nada, não é? – Disse Cida em voz
baixa.
-Sei. Mas ela se transformou nisso que ela é hoje por minha causa, não
há como negar. Esse fato vai me assombrar para sempre, minha filha... As
assombrações não são exatamente como a gente pensa que elas são. – Seu Tomas
arqueou uma sobrancelha e riu de soslaio.
Cida não pode fazer nada senão suspirar fundo e jurar que jamais
tocaria no assunto.
-E já que estamos falando de assuntos delicados, o senhor vai me
entender se eu pedir um aumento, não é?
Mas isso fora há cinco anos, e há muito tempo.
Cida dava os toques finais na mesa de jantar para dois, enquanto Dona
Helena tentava escolher os castiçais que melhor combinavam com a toalha de
renda.
-Não se esqueça de esvaziar os cinzeiros antes de ir embora, Cida.
Pode ir mais cedo, hoje.
_Obrigada, dona Helena, pode deixar. – Cida pensou em parabenizar a
patroa, mas achou melhor não.
Na cozinha, ela encontrou seu Tomas chegando do trabalho, com o paletó
dobrado sobre o braço direito e carregando uma caixa de confeitaria.
-Quer ajuda?
-Não, minha filha, obrigado. É uma torta de chocolate, a preferida
dela. Guardo um pedaço para você.
Será que os olhos dele sempre brilharam assim quando ele falava dela?
Pensou Cida.
-Seu Tomas, o senhor não existe! Homens como o senhor são um artigo em
falta no mercado...
Ele riu todo acanhado, como um menino, e ela o abraçou.
-Parabéns. Não é todo dia que se faz 40 anos de casado.
-Obrigado, minha filha. Boa noite.
Quando estava indo embora, Cida espiou pela porta do corredor e viu
dona Helena abraçada ao seu Tomas, chorando. Pela primeira vez ela viu a patroa
como uma velinha: pequena, frágil, débil até, os ombros curvados sacudindo com
os soluços. Seu Tomas então levantou o rosto da esposa e limpou suas lágrimas,
sussurrando alguma coisa.
Não é à toa que dona Helena se espantava com o que via na TV, pensou
Cida enquanto esperava no ônibus. Aliás, não é à toa que o mundo está do jeito
que está – o amor que está em falta por aí estava concentrado naquele par de
olhos azuis.