sexta-feira, 13 de maio de 2011

Ecos


“As batidas continuam. Elas ecoam pelo apartamento inteiro, sem ritmo definido, às vezes fracas, às vezes fortes... Quando eu acho que elas finalmente terminaram, o som surdo e abafado quebra o silêncio e eu desperto, assustada, olhando para as luzes que entram e se refletem no teto. O batente dessa janela velha está tão torto que quase congelo durante a noite, com o vento que entra pela fresta sempre aberta. Não me lembro quando foi última noite tranquila de sono que tive, ou do último dia inteiro que vivi conscientemente... Antes eu achava que as batidas vinham do vizinho da esquerda, depois tive certeza que eram do da direita; hoje, já nem sei mais de onde elas podem vir. É como se elas não tivessem mais um ponto único de contato, como se...”

Marina fechou o diário e tomou outro gole do café. Esfregou os olhos e olhou para o relógio: duas horas já haviam passado, em questão de segundos. "Foco, foco, foco..." ela repetia mentalmente como um mantra, olhando para a tela do computador. Mas logo seu olhar se desviava para a janela, por onde ela assistia a vida se arrastar.

18h30. Mais um rosto cansado na multidão voltando para casa. Marina caminhava mecanicamente pelos corredores do metrô, seguindo o fluxo. No vagão, espremida em um canto contra a janela, ela observava seu reflexo, no meio de muitos outros. As luzes do túnel embaralhavam sua vista cansada. “Meu Deus, que olheiras são essas... esse rosto não pode ser meu..” Ela fechou os olhos. Ao voltar a abri-los, uma multidão de rostos diferentes lhe encarava de volta. A caminhada de volta para casa sempre era um alívio, mas ao se aproximar de seu prédio, um arrepio lhe lembrava daquele estranho barulho que lhe atormentava há dias. O zelador não retornara suas mensagens, muito menos os vizinhos. Ela sentou-se na mureta da garagem e fumou um cigarro, absorta pelo zunido do elevador. “Por favor, esta noite não, por favor..."

Mas aquela noite foi como as outras anteriores, e o dia seguinte também imitou os tantos outros, e a noite seguinte também, e o dia depois do outro. A sensação de repetição e de impotência inundava lentamente a vida da jovem de 24 anos, uma força que lhe sugava as energias e tornavam suas vontades, alegrias e sonhos parte de algo muito remoto, quase como a conversa de um desconhecido no ônibus. Ela sentava no parapeito da janela e via o sol nascer quase todos os dias, rabiscando em seu diário. Os cabelos escuros e lisos lhe caíam pelos ombros, emoldurando seu rosto cada vez mais pálido e sem expressão. As lágrimas às vezes lhe inundavam os olhos castanhos, e ela se entregava ao saudosismo e ao desespero, abraçando os joelhos contra o corpo, chorando baixinho e se lembrando da família e dos amigos que deixara para trás em busca de uma vida melhor, de suas ambições; cada sonho tem seu preço – e às vezes a vida castiga dando aquilo que se deseja. “Era para ser assim mesmo? Onde foram parar...” Mas as palavras já não saíam mais como deveriam; elas também começavam a soar as mesmas, como seus dias.

Foi então que uma estranha sensação começou a lhe incomodar. De início era apenas uma má impressão, como quando se está em uma sala lotada e temos a certeza de que alguém está nos encarando. Mas como o passar do tempo, aquela sensação foi se tornando cada vez mais constante e forte. Era cada vez mais comum Marina sair de seu estado sonâmbulo, como que acordada bruscamente, e olhar apreensiva para trás ou para o lado, respirando com dificuldade.

- Tinha alguém aqui por perto, querendo falar comigo? Nossa, eu ando tão desligada ultimamente, não tenho dormido muito bem... eu jurava que tinha alguém por aqui, sabe? - Mas seus colegas de trabalho apenas olhavam-na e desviavam o olhar, frios, antes de especularem se seu “estado ausente” era por causa de álcool ou pó.

A cada esquina, a cada quarteirão, a cada estação de metro; cada vez que ela saía do elevador, entrava em um bar ou em uma livraria; ao tentar acordar e ao tentar dormir. Marina olhava furtivamente para os lados procurando reconhecer um olhar ou descobrir a razão daquela angústia obsessiva que lhe esmagava os pensamentos. Via risos, olhares de soslaio, vultos irreconhecíveis; sentia cheiros estranhos e vertigens que lhe roubavam os sentidos – e acabava perdida no fim da tarde, olhando o entardecer como se rebobinasse seu próprio filme.

O acontecimento que finalmente colocou sua saúde mental em cheque ocorreu da maneira mais casual possível – afinal, os absurdos da vida sempre vêm camuflados nas mais corriqueiras banalidades. Marina andava pelo escritório durante um intervalo, bebendo seu café, quando na sala de recepção uma imagem no visor das câmeras de segurança lhe chamou a atenção. Intrigada com a imagem, ela se aproximou da tela em preto-e-branco. Embora achasse que a semelhança, ainda que assustadora, fosse mera coincidência, a jovem estremeceu e se afastou do visor, tentando colocar os pensamentos em ordem. Porque não fazia nenhum sentido a mulher que saía pela recepção com uma escada debaixo do braço ser exatamente igual a ela.

Exatamente.

Naquela noite (ou na seguinte?), Marina tremia debaixo dos cobertores, o olhar vidrado num ponto perdido no teto. As batidas ecoavam como marteladas vindas das paredes, do chão e do teto, mais fortes do que nunca; a vibração chegava até seu corpo entupindo-lhe os ouvidos e percorrendo cada músculo com um espasmo. As paredes, lambidas pelas luzes que vinham do mundo exterior, pareciam adquirir vida e movimentar-se, pulsando no ritmo descompassado dos golpes. Ela tinha febre. Sua visão ficava cada vez mais turva, o teto que já era alto parecia tomar proporções gigantescas, perdendo-se para sempre no vazio. Então, algumas sombras lhe chamaram atenção vindas da sala. Fraca e trêmula, Marina tentou levantar-se da cama, porém caiu de joelhos, segurando-se na escrivaninha à sua frente. Aos poucos ela foi tateando e se segurando pelas paredes, até chegar ao pequeno cômodo da frente. Do lado de fora de seu apartamento, prostrava-se uma figura que andava de um lado para o outro, parando algumas vezes para esmurrar sua porta.

- Por favor... por favor... eu não... – Marina gemia com todas as forças que lhe restavam, mas era inútil. Os sons arranham sua garganta e morria como sussurros na sala que pulsava e parecia lhe engolir. E antes que pudesse abrir a porta, a garota deixou-se cair, derrotada. A última coisa que viu antes de desmaiar foram as sombras vindas por debaixo da porta, enquanto a pessoa ia embora.

Na noite seguinte, as batidas desaparecem.

Mesmo que isso pudesse significar a volta da paz para sua vida, Marina ainda sentia que algo estava errado, que não estava conseguindo entender a realidade em que se encontrava. A sensação de estar sendo observada ainda não passara totalmente; e ela ainda não descobrira quem estivera em seu apartamento naquela noite. Alguns dias tranquilos seguiram-se de noites calmas e silenciosas, e Marina aos poucos recobrava o controle de seus sentimentos. Em um fim de tarde, pouco antes do fim do expediente, ela lembrou-se de seu diário, há muito esquecido em uma gaveta de sua mesa. Ao abri-lo, encontrou o pequeno caderno totalmente rabiscado, em uma letra ilegível e páginas rasgadas soltas. Marina não conseguia entender nada do que estava escrito, tamanho era o emaranhado de letras e estranhos desenhos, feitos com tanta força que páginas inteiras eram atravessadas por sulcos feitos pelo lápis. E em uma das últimas páginas, ela encontrou a anotação: "não se esquecer de devolver a escada".

Marina sentiu um arrepio correr por sua espinha. Pegou sua bolsa, seu casaco e correu em direção ao elevador. “A janela, a janela! Como eu não reparei que ela foi consertada!? Meu Deus, não fui eu... não pode ter sido! Não...” Porém, algo a paralisou. Após uma fração de segundos sua mente entendeu o que sua visão encarava, como que hipnotizada, no visor da câmera de segurança. O preto-e-branco e as interferências que atravessavam a imagem tornavam ainda mais insanos e fantasmagóricos os olhos que lhe encaravam de volta, como um estático e destorcido reflexo de seus próprios olhos.

Olhos exatamente iguais aos seus.

Ela correu para as escadas, determinada a finalmente descobrir quem era aquela pessoa. Ao chegar à recepção, viu a estranha figura virar a esquina e se misturar à multidão na rua. Esbarrando e até derrubando pessoas, Marina seguiu aquela pessoa, sem ter certeza se estava atrás da figura correta – mas ao mesmo tempo, com uma familiar certeza de onde precisava ir. Depois de intensa corrida labiríntica entre carros e pessoas, seu pressentimento confirmou-se ao se deparar com a entrada de seu prédio – e aquela estranha entrando no elevador. Exausta, ela correu o suficiente para ver pela janela do elevador que subia aqueles olhos terrivelmente negros e estáticos, mas que pareciam sorrir.

Ao terminar de subir as escadas de seu prédio, as luzes automáticas se ascenderam, e a jovem encontrou-se sozinha no corredor de seu apartamento. Lentamente, ela se aproximou da porta e colocou a chave na fechadura. O barulho ecoou por todo o corredor, mais alto do que ela imaginara. Porém, a chave não funcionava. Não dava voltas. Marina andou de um lado para o outro, esfregando o rosto, assustada. Suas mãos tremiam, e nada mais fazia sentido. "Não é possível... não é possível... eu não posso estar ficando louca.... as batidas pararam...” E em um aceso de raiva, a jovem esmurrou a porta, fechando os olhos e rangendo os dentes, até suas mãos arderem e ela mal conseguir abri-las. Porém, encarando seu desespero, ela suspirou profundamente, e pôs-se a caminhar para longe dali.

Foi então que ela ouviu o trinco destravar-se, talvez movido pela batidas e socos.

Marina entrou no quarto escuro, e por vários minutos ela não acreditou no que via. As mãos trêmulas cobriram sua boca, e ela se abaixou lentamente, sentindo o coração acelerar cada vez mais. Moscas cobriam o corpo que jazia ali no chão da sua sala, caído de bruços. Um dos braços se esticava em direção à porta. Marina sentou-se no chão, respirando com dificuldades por causa do cheiro forte que empesteava o apartamento, e viu uma escada caída em um canto. Ela então reparou em um pedaço de papel esmagado entre os dedos da mão que jamais alcançara o trinco. Em uma das páginas de seu diário, lia-se ““As batidas continuam. Elas ecoam pelo apartamento inteiro, sem ritmo definido, às vezes fracas, às vezes fortes... Quando eu acho que elas finalmente terminaram, o som surdo e abafado quebra o silêncio e eu desperto, assustada, olhando para as luzes que entram e se refletem no teto. O batente dessa janela velha está tão torto que quase congelo durante a noite, com o vento que entra pela fresta sempre aberta. Não me lembro quando foi última noite tranquila de sono que tive, ou do último dia inteiro que vivi conscientemente... Antes eu achava que as batidas vinham do vizinho da esquerda, depois tive certeza que eram do da direita; hoje, já nem sei mais de onde elas podem vir. É como se elas não tivessem mais um ponto único de contato, como se...”

As lágrimas desceram quentes, mas um estranho sentimento de calma e leveza as acompanhava. Era como ela entendesse porque não se sentia uma pessoa inteira nos últimos tempos; finalmente, sentia como se acordasse de um longo pesadelo – e voltava a encarar a realidade. Marina então abraçou aquela estranha e familiar figura.

As luzes do corredor se apagaram.



Conto inspirado em tweets (os links deles estão nos comentários) da @littlemarininha! Especial para a sexta-feira 13! (tá, como se eu escrevesse coisas fora desses temas...)

4 comentários:

Bru Busnardi disse...

a única coisa que eu consigo dizer nesse momento é que eu me arrepiei dos pés à cabeça.
lindo, Bonis, muito lindo.

Bonaldi disse...

Os links certinhos estão aqui, qdo eu coloquei como hiperlinks o blogger ñ tava direcionando corretamente:

http://twitter.com/#!/littlemarininha/status/65129481353969664

http://twitter.com/#!/littlemarininha/status/65129773910867968

http://twitter.com/#!/littlemarininha/status/65131076250648576

littlemarininha disse...

Fiquei sem palavras. To meio sem palavras desde sexta.
Antes de tudo, UAU! Que MEDO, cara, huahuaha. Adoro textos que me deixam tensa, vc tem o dom de fazer isso.
Segundo: que honra, hein! =D Ter meus tweets servindo de inspiração pra um texto tão legal me deixa orgulhosa, sério.
Terceiro: Lindo o nome da personagem,huhauahuhaa
Quarto: Já devolvi a escada.

;)
Muito bom, Bonis, mtttto bom

Tyler Bazz disse...

Wow!! Pasmei.