quarta-feira, 1 de abril de 2009

Conto: Não era Kafka

- Mãe, tem uma barata na sala!

A mulher entrou na sala arrancando um dos tamancos e parou chocada com o monstro cascudo pré-histórico marrom que estava entre os livros de arte africana na mesa de centro de cristal albanês, sentiu-se enojada por saber que antes de estar ali aquela mãe já tinha posto trilhões de ovos nos cantos quentes e úmidos que sua empregada nordestina não sabia limpar direito, aquela mater que já tinha criado favelinhas para seus filhos crescerem e se procriarem e a inveja de saber sabe-se lá Deus como que uma bomba atômica mataria a si mesma e sua filha mas que os filhos dela ainda procriariam ente si em seus crânios semi-pulverizados e seu cheiro característico se impregnaria nas suas roupas íntimas e nos seus melhores lençóis e seu cocô faria pequeninas trilhas pelo carpete da sala e pelos cantos do sofá como caminhos que trilham aventureiros sozinhos no mundo e andariam por entre os frascos de valium na cabeceira da cama e nas garrafas de Martini escondidas no armário debaixo da pia e nos licores caros de seu marido que passava as noites de sábado e as tardes de domingo no escritório enquanto ela criava sua filha como uma mãe solteira fiel e nunca se permitia ter aventuras com o carteiro como suas vizinhas e melhores amigas que ela sabia que eram tão confiáveis quanto cobras do deserto e suas tripas se reviraram pensando que tudo teria sido diferente se ela tivesse ouvido sua mãe e porque a barata não era um cachorro a barata não era um gato a barata não era um canário não era um peixinho dourado não era um carro não era solteira não era um emprego não era um amante não era um divórcio não era um revólver carregado a barata era um nojo a barata era uma preta a barata era um aborto que sobrevivia sempre e sempre a barata era um vômito de Deus (que Deus não me ouça) a barata era uma pederasta era uma puta era uma orgia era um incesto era boêmia era pobre era jovem era forte demais mãe demais mulher demais era grande demais selvagem demais fértil demais a barata era um corpo branco como leite como pus - se visto por debaixo da mesa de cristal.

Mas ela estava por cima. O tamanco esmagou o inseto, transformando-o em uma massa disforme que por alguns instantes ainda pulsou.

- Clarice, sua inútil, porque você não matou esse bicho sozinha?

Ninguém quis comer os restos da barata.

Nenhum comentário: