quarta-feira, 12 de maio de 2010

Primeiro filho

Alguns segredos são como câncer. Apodrecem-lhe por dentro.
A frase não lhe saía da cabeça, e Catarina não prestava atenção nem na paisagem que passava pela janela, e nem no marido, que falava novamente dos planos e sonhos para o bebê. Sua mente vagava longe de qualquer coisa que lhe dissesse respeito.
-... mas se for mesmo um menino eu não vou querer que ele estude no bairro e... Amor? Catarina? Terra para mamãe...
- Sim, sim, Marcos. Escuta, quando você pode me acompanhar ao doutor Silva?
- Não sei, tenho que ver. Com todos os casos novos no escritório, eu não posso deixar meu chefe na mão. Sabe como é, tenho que justificar a promoção! Mas há algo de errado? Você nunca se importou de ir sozinha. Eu posso falar com...
- Não, não, tudo bem.
O carro entrou na garagem da casa recém-comprada. O bairro não era muito bom, e toda a família tentou persuadi-los a não serem impulsivos, a alugarem um apartamento até o bebê nascer. Mas a energia do casal, tão jovem e entusiasmado a arcar com as escolhas de ter a própria família, logo contagiou todos ao seu redor. Era como sorrir ao ver uma criança dando os primeiros passos. O dinheiro era pouco e os quartos grandes e vazios, mas ambos tinham uma brilhante carreira pela frente - e o bebê veio como uma consequência mais do que natural, a peça mais do que necessária da tapeçaria da vida. “Porque no meu tempo, quando sua avó engravidou...”.
Catarina, agora no oitavo mês, sentia o estômago revirar ao passar pelo portão.
- Pode ir entrando, amor, vou pegar as compras.
- Surpresa! – Catarina quase caiu para trás ao ver os pais em sua sala, os braços abertos, um enorme sorriso em seus rostos e um faixa na parede, "SENHOR, ABENÇOAI ESTA CRIANÇA!". - Ai, querida, eu falei para o seu pai que você não pode se assustar, mas você sabe como ele é...
- Mãe, oi... achei que você ia chegar só semana que vem. – Ela tentava disfarçar o desconforto com um sorriso.
- Esse era o combinado, mas você conhece a sua mãe. Como vai, meu anjo.
- Estou bem, pai.
Marcos entrou na casa com sacolas, cumprimentando os sogros. Mas antes mesmo de colocá-las no chão, pulou para o meio da sala, em direção a um imenso embrulho de presente. – Meu, que é isso? Vocês não precisavam... UAU! Amor, olha, olha!
Catariana viu seu marido pular de felicidade, abrindo a caixa de um carrinho para bebês. Ele alisava a embalagem e olhava dela para a esposa, como um garoto ao ganhar a primeira bicicleta. Ela viu seu olhar brilhando de emoção, tão genuíno e emocionado, tão alegre, tão... apaixonado. Sua garganta apertou com um gosto amargo, os olhos arderam em lágrimas... e Catarina correu para o banheiro.
- Amor...
Ela sentou-se num canto e chorou, com o rosto contra uma toalha. Chorou por um bom tempo, deixando os soluços e as lágrimas lhe aliviarem o peito. Lá fora, um silêncio a aguardava, mas sua mãe já tinha avisado, com um olhar condolente: deixa, é coisa de grávida. Ao levantar-se para lavar o rosto, Catarina fechou com força o espelho do armário, causando uma pequena rachadura no canto esquerdo. O vidro refletira seus olhos cansados; mas agora mostrava sua barriga.

8 da manhã.
Catarina levantou-se, tomou os antidepressivos, lavou o rosto. Sua mãe já estava na cozinha, preparando o café. O pai partira de madrugada para evitar o trânsito, e ela não parava de falar e reclamar. - Mas não se preocupe querida, ele volta assim que o bebê nascer.
O bebê. Catarina então acordou.
Marcos passou correndo pelas duas, engolindo uma xícara de café e uma bolacha. Beijou a esposa na testa e já estava na porta quando voltou para pegar a maleta.
- Ai, é uma pena o que aconteceu com a cadelinha, a... como era o nome dela mesmo? A Lica, isso, Lica! Ia ser tão bonito as duas mulheres da casa com seus filhinhos!
- Dona Irene! Por favor, né... - advertiu Marcos.
- Só comentei, poxa! É a natureza. Tem cachorros que fazem isso com os filhotes quando eles nascem fraquinhos, ou quando elas estão doentes. Não é crueldade não! E ela deve ter fugido porque os animais...
- Não foi nada bonito ter que dar um jeito naqueles filhotinhos todos... argh! Deixa pra lá! Ainda bem que você não viu nada, né amor? Bom, tenho que ir. Até!
Catarina olhava para o quintal, as folhas secas vindas dos vizinhos sobre a grama e sobre o canteiro de flores. Ela havia se esquecido de regá-las, e todas pareciam tão exaustas quando ela. Porém não tinham os pés inchados, dores pelo corpo, quedas intermináveis de cabelo, estrias, nem consciência do quão rápido o tempo passava, não tinham botões; já estavam secas demais. - Algumas fêmeas não nascem para serem mães, eu acho. – E levantou-se da mesa.
Sentada no futuro quarto de seu primeiro filho, a sombra do móbile de cavalos passava por seu rosto inexpressivo, enquanto suas mãos dobravam repetidamente as roupas que a criança já havia ganho - quase todas verdes ou amarelas, já que o sexo seria surpresa. “O que estou fazendo com o Marcos? Como explicar para ele? Meu Deus... eu o amo tanto, tanto! Tudo era tão lindo. Ele é tão lindo. Deixei que isso fosse longe demais. Acho que ele já nem me reconhece. Eu não me reconheço. Não carregando esse... esse...”. Sua mãe entrou no quarto e sentou-se ao seu lado.
- Me perdoa mãe, me perdoa? – Catarina a abraçou, começou a chorar e adormeceu.

Quando Marcos chegou à noite, Catarina parecia mais animada, e o marido gostou de vê-la falante e agitada na cozinha com dona Irene.
- Filha, só esse copo de vinho. Vocês preferem carne vermelha ou branca?
- Ahn... é... nós estamos evitando comer carne, dona Irene. - Disse Marcos sem jeito, e apontou com os olhos para Catarina.
- Catarina! Onde já se viu! Você está...
- Eu sei! – gritou Catarina, para a surpresa de ambos. – Mas desde o começo do mês não posso nem sentir o cheiro de carne. Meu estômago embrulha, tenho ânsias que até fazem minha barriga doer! E me vem um gosto estranho na boca, como se fosse... como se fosse... ai, olha, só de falar. - ela pôs a mão na protuberante barriga e foi para o sofá. O marido e a sogra se entreolharam, mas Marcos desviou o olhar. Ele tentava disfarçar a todo custo.
Catarina acordou assustada no meio da noite. Estava ensopada de suor, sentada em um canto do quarto. Não sabia como havia chegado ali. Ela então se acalmou, controlando a respiração, enquanto seus olhos se acostumavam com a escuridão. Assim, foi percebendo lentamente os machucados nas palmas das mãos, as marcas das próprias unhas. Catarina voltou em silêncio para a cama, mas não percebeu os pés sujos de terra. Nem que Marcos estava acordado, observando-a aterrorizado.

O leite vazava, criando manchas escuras e redondas em sua camiseta. Catarina olhava seu reflexo na janela, a repulsa e a culpa enrijecendo-lhe os músculos quase em espasmo. Ao ir para a cozinha, Marcos apressou-se a tirar o saco de lixo da varanda do quintal, jogando-o no porta-malas do carro. Era sábado. Sua mãe estava no portão, conversando com as vizinhas.
- Amor, vou levar o lixo naquele terreno perto da rodovia, tudo bem? Qualquer coisa me...
- Ok. – Catarina parou na porta, observando o quintal limpo, a área recém-lavada. Marcos a observou de costas, tão linda e melancólica. Um arrepio lhe fez suspirar, quieto, sem querer aceitar os pensamentos que lhe inundavam a mente dia e noite. Ele tentaria de tudo para ajudar sua esposa, e só havia um lugar por onde ele poderia começar. Pegou as chaves e partiu.
Catarina tirou as sandálias e caminhou pelo quintal, olhando para o céu azul impecável, sem nuvens, sentindo a grama úmida. A casinha da cachorra parecia dez anos mais velha, pela poeira e as tigelas secas sob o sol, em um canto do terreno. Ela se aproximou, passando a mão sobre a fina camada de pó, fazendo pequenos desenhos com as pontas dos dedos - até que um prego cortou-lhe o indicador. Catarina, por instinto, levou a mão à boca, e o gosto de sangue lhe fez enjoar e vomitar. Ela curvou-se e ali, caída de quatro, a mãe sentiu o olhar ser atraído para o interior escuro da casinha, tão quente e próximo de seu rosto. Ela se levantou lentamente e tirou-a do lugar. Começou então a cavar, sem saber o que realmente estava fazendo ou por que. Cavou por vários minutos o quadrado de terra seca e fofa com as mãos trêmulas, sua ansiedade e medo cada vez maiores, até ver a ponta de um corrente. Puxou-a, sentindo o peso na outra ponta revolver a terra e finalmente se expor para a claridade do dia. Catarina caiu para trás ao ver o pequeno cadáver em avançada decomposição, gritando de horror e cobrindo os olhos. Em sua mente as imagens e sensações vinham como flashes violentos, mas claros: a mordaça... a faca... os olhos tristes da cadela... a corrente envolta de seu corpo ainda morno... os frágeis filhotes ganindo... suas peles macias e tenras... o gosto da carne.
O corpo da grávida fez um violento espasmo ficou quieto. Ela então se levantou calmamente, o olhar vazio e inexpressivo como o de uma máscara. Caminhou até a cozinha, pegou o frasco de álcool do armário e a caixa de fósforos. Despejou metodicamente o líquido sobre os sofás, o tapete e o carrinho de bebê, que estava bem no centro da sala. Afastou-se, acendeu um palito e caminhou para a frente da casa.
- Ai meu Senhor, fogo! Catarina!– Dona Irene correu para casa em pânico ao perceber a fumaça, as vizinhas gritando por ajuda. Ela abraçou a filha e correu para a casa da frente, enquanto a rua se enchia de curiosos e pessoas tentando ajudar. Logo uma sirene soou virando a esquina. A fumaça preta fedia, e envolvia a todos como uma densa neblina.

Com o rosto enterrado entre as mãos, Marcos tentava se recompor e continuar a falar. Respirou fundo, encarando o doutor Silva. - Cada vez que eu acordo com ela gritando feito uma selvagem e se debatendo, eu desabo, eu morro! Mas tento ser forte e ajudá-la, só que nada mais adianta! Ela nunca se lembra. Às vezes eu a pego com o olhar vago, perdido, e eu juro que ela pode ficar assim por horas a fio! E... meu Deus.... e...
- Algum incidente como o dos filhotes voltou a ocorrer? – perguntou o médico.
- Várias vezes. Quando consigo dormir, tenho que acordar mais cedo para tentar limpar a sujeira que ela faz de noite. Ontem foi outro gato... o senhor deveria ter visto o estado que, que... – e desabou a chorar, o corpo tremendo, o rosto entre as mãos.
Doutor Silva deixou o rapaz acalmar-se, procurando as palavras:
- Tudo indica que Catarina desenvolveu um caso de TDI - Transtorno Dissociativo de Identidade, agravado ainda mais pela depressão que ela vem sofrendo. Nesse estado alterado que se manifesta de noite, ela é outra pessoa, um indivíduo agressivo e com tendências psicóticas que dá vazão aos sentimentos que ela vem suprimido e lidado sozinha. Mas não é algo raro em casos como o de sua esposa.
- Suprimido? Mas eu tenho ajudado ela em tudo e...
- Eu descobri que ela sequer foi à psicóloga que eu indiquei a ela. Em sua atual condição, é imprescindível acompanhamento psicológico. É um fardo muito pesado e traumático para uma mulher carregar um filho morto. Mas felizmente esses três meses estão passando...
Marcos empalideceu e não ouviu mais nada.
Doutor Silva percebeu no longo silêncio que se seguiu o que estava acontecendo: Catarina não contara ao marido. A situação era pior do que ele imaginava.
- Marcos, eu preciso ver Catarina imediatamente. Ela pode representar um perigo não só para si mesma, como para qualquer outra pessoa.
Seu telefone tocou. Era sua sogra.

Dona Irene desligou o celular e foi consolar a filha desolada, que olhava para a casa.
- Calma filha, vai ficar tudo bem. Os danos não foram grandes! Logo estará tudo pronto para o bebê de novo!
- Mãe... o que aconteceu? Eu... eu...
- Calma, querida. Ninguém se machucou, graças a Deus. Olha, vou com Fátima pegar algumas roupas para você, é logo ali na esquina, volto logo, e o Marcos já está chegando. Você pode segurar o Julinho? Olha que coisa fofa de neném!
A vizinha deixou o filho no colo de Catarina, que observou as duas sumirem pelo portão. O bebê loiro e gorducho chupava o dedo calmamente em seus braços.
“Era um menino”, pensou Catarina. “O tempo está acabando, meu Deus! Como vou contar para todo mundo, para o Marcos! Eu falhei, eu não pude lhe dar um filho, dar um filho pro meu amor... agora ele é apenas um pequenino cadáver apodrecendo dentro de mim... como um câncer.... eu falhei ... o Marcos nunca vai me perdoar... um câncer... a cadela aqui falhou! Vou parir um primogênito natimorto! Um corpo bastardo em decomposição! Eu falhei, a cadela falhou Marcos, sua cadela falhou!...”.
As lágrimas desciam por seu rosto imóvel. De repente Catarina fechou os olhos e sua cabeça pendeu para frente. Ela então se levantou de vagar, com uma expressão vazia e fria nos olhos negros. Tateou o bolso da frente da calça, reconhecendo a caixa de fósforos. Olhou para os lados, viu a rua quase vazia. Olhou finalmente para a criança, que sorria para ela, mexendo as mãozinhas.
A grávida atravessou a rua com o bebê em seus braços, passou pela fachada chamuscada e, calmamente, atravessou a sala destruída e foi para o quintal.