quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Conto: Dias chuvosos e segundas-feiras sempre me deprimem

- Que patético.
Estou na janela de casa lendo a manchete do dia quando Karen chega de carro e buzina. “Fã tem cabelos grisalhos e 15 tatuagens da cantora Miley Cirus". Eu amasso o jornal e amarro um lenço em volta dos cabelos loiros hermeticamente penteados. É um entardecer chuvoso e frio, mas ainda assim eu visto os óculos de sol. Desse momento em diante, não posso sair em público sem eles.
Karen está brigando com o volume quando entro e cumprimento-a. Uma balada triste dos Carpenters toca no rádio e no mesmo instante eu percebo que ela está no repeat, e me lembro do motivo. A gente vai ficando indiferente a essas coisas com o passar do tempo, vai se acostumando. Suas mãos ossudas tremem quase imperceptivelmente e seus dentes rangem, fazendo seu rosto cadavérico parecer ainda mais magro. Ela sorri para mim.
- Você está linda!
- Obrigada, querida. – Respondo, e ela toma um pílula e um gole do café frio que descansa no porta-copo. Coloco minha bolsa no banco de trás, ao lado de um livro que a mãe dela lhe deu há alguns meses, na vã esperança de ajudá-la. Karen jamais contara à família o verdadeiro motivo por trás de sua doença; eles não entenderiam, e as coisas ficariam ainda piores. Ela poderia inclusive colocar os outros em risco, e Karen morreria se isso acontecesse.
Quase ninguém a entenderia, exceto nós do grupo.
Você é o que você come está escrito na capa.
Deve ser difícil não se sentir um monte de merda quando seu estômago não vê nada substancial há semanas. Karen é uma overdose de café, inibidores de apetite, xenical, quitosana, faseolamina, cloridrato de sibutramina, efedrina, pílulas de emagrecimento e mais alguns outros inibidores de apetite proibidos no país.
Meu estômago ronca, mas eu deixo para abrir o pacote de bolachas que trouxe na bolsa quando chegarmos ao celeiro.

Depois de uma hora, o carro entra em uma estrada de terra, e ao longe vejo o celeiro velho e imponente. A fazenda abandonada é da família do Jota, o fundador do grupo e quem me apresentou a ele há quase um ano, quase que por acidente.
Eu havia acabado de me formar em canto. Era minha segunda faculdade e, como qualquer publicitária insatisfeita ou cantora em ascensão, estava desempregada. Meus dias e minhas noites se misturavam conforme eu mandava currículos pela internet e ia a algumas entrevistas de emprego, em uma cidade grande e cara para onde eu me mudara em busca de novos ares e não conhecia ninguém - um clichê de artista amargurado que foi se tornando ridículo e insuportável conforme as contas começaram a se acumular embaixo da porta. As oportunidades para cantar eram tão ruins quanto esparsas, mas suficientes para colocar qualquer sonho ou força de vontade em perspectiva.
Eu conheci o Jota quando comprei por um site um pôster do filme Quanto mais quente melhor, de 1959, por uma pechincha. Estava precisando de um mimo, afinal de contas. Ele disse que morávamos perto, e que poderia levar o cartaz em casa sem problemas, se eu não me importasse. Na época eu não saía de casa há seis dias, e não conversava com ninguém há oito. Não, eu não me importava.
Ao abrir a porta, me deparei com um sujeito de cabelos castanhos sujos na altura das orelhas, com um cavanhaque, sandálias franciscanas e uma camiseta do The Cure. Aos 26 anos, ele finalmente estava saindo da casa dos pais e tinha tantos cartazes de filmes e bandas e tão pouco dinheiro que seu quarto-sala recém-alugado parecia “uma sessão de filmes pornôs de uma locadora, cheia de pôsteres de lançamentos ultrapassados forrando as paredes e colados uns sobre os outros, disputando espaço e atenção”, nas próprias palavras dele.
- Sabia que eles fazem isso para aliviar a tensão e a culpa de você estar escolhendo entre um gang-bang inter-racial e o filme de uma celebridade decadente, por exemplo, ao lado de desconhecidos?
Não, eu não sabia.
Quando ele viu meus olhos brilharem ao reparar no longo tubo de papelão que ele trazia debaixo do braço, ele soube que eu era uma deles.
- Você é fã dela, não é? Digo, da Marilyn. Acho que você vai gostar do...clube que eu fundei.
- Um fã clube? Perguntei.
Minha admiração por Marylin Monroe começou cedo, assistindo e reassistindo as fitas de VHS que minha avó tinha. Era uma bela coleção; Dona Júlia passou boa parte da vida dedicando seu tempo livre às revistas de fofocas e aos filmes da bombshell, e quando fez setenta anos, ganhou de meu pai uma coleção dos clássicos da loira e um videocassete. Eu passava as tardes na casa dela depois da escola, e nós encenávamos as cenas mais divertidas e nos maquiávamos, e ríamos até não poder mais. Em seus últimos anos de vida, já bastante debilitada pelo Alzheimer, dona Júlia mal se lembrava quem eu ou meu avô éramos, mas ela ainda citava de cor suas cenas preferidas. E quando a lucidez ameaçava voltar, fazendo-a ter uma crise de depressão por não ter ideia do que estava fazendo ou se seus pais ainda estavam vivos, eu me vestia e me maquiava e cantava para ela, e juntas nos perdíamos nas lembranças (inventadas ou reais) dos tempos dourados de Hollywood. Ela era Marylin, e eu Joan Crawford ou Bette Davis, e juntas reclamávamos do assédio da imprensa e suspirávamos por Montgomery Clift.
- Não exatamente Digamos que meu “clube” seja a forma mais perfeita e extrema de se homenagear algum artista que você ama. E por isso mesmo, é um "clube" bem exclusivo. Se você me permitir continuar, peço apenas a total e absoluta discrição. Senão, vou ser obrigado a te matar. – Ele riu e eu esperei que ele fizesse de novo as aspas com as mãos, mas ele não as fez.
Sentada na minha sala, assisti muda a explicação de Jota. Horas pareceram se passar, mas a paixão e a certeza dele eram contagiantes e dariam consistência até à mais insana das ideias. Pessoas descoladas tem um jeito peculiar de fazer você se sentir um idiota se não concordar com elas. Os descolados e os loucos. Mas mesmo assim, quando ele foi embora, eu fechei a porta jurando nunca mais pensar no assunto, pois já tinha problemas suficientes.
Um mês depois, meu cabelo estava platinado.
Karen estaciona junto aos outros carros, na parte lateral do celeiro. Jota está conversando com Diana e James, enquanto os três analisam um carro preto que James usará ainda este ano, e que ela provavelmente usará no ano que vem, dependendo do estado em que ele ficar. Os três acenam para nós, e nós acenamos de volta. O sol está terminando de se por, e o tom azulado da escuridão é quebrado por uma luz amarela de um poste.
Nós adentramos o celeiro transformado em um aconchegante e rústico pub. Rostos famosos decoram cada centímetro quadrado das paredes, sorrindo para nós. Outros já chegaram e estão sentados nas mesinhas ao redor do palco ou no bar, onde nos sentamos. Ao nosso lado, dois sujeitos discutem calorosamente literatura e o sentido da vida – um velhote gorducho com uma cerveja na mão, e outro um pouco mais jovem, com um cigarro fedorento.
- Olha, Buck, você precisa entender que a vida não tem sentido algum antes e independentemente do fato do homem viver. O valor da vida é o sentido que cada homem escolhe para si mesmo.
O outro bate na mesa e ri, balançando a cabeça, antes de acender um cigarro. Karen revira os olhos e me puxa para uma mesa.
- Já te contaram como aquele outro fez para ficar vesgo? Ele pegou um...
Andy, um adolescente vestido de preto e com o cabelo descolorido e cortado em tigelinha nos interrompe tirando uma foto minha, de surpresa. O brilho nos cega por alguns segundos, e nós rimos.
A ideia geral é simples, e possui poucas regras. Nesse celeiro, você não só veste e age como o seu ídolo. Você é o seu ídolo. E respeitando algumas limitações de cor, gênero e qualquer casualidade que lhe fuja do controle, você fará qualquer coisa para ser igual ao seu ídolo. Qualquer coisa.
Nós nos sentamos em uma mesa, ao lado do Cazuza. Todos assistem compenetrados ao show de Amy Winehouse. O cara de vinte e poucos anos engole metade das letras e passa a maior parte do tempo bebendo e tentando não desmaiar – e o espetáculo é incrível. Ele deve ter gasto os tufos nas próteses de silicone, nas tatuagens e no cabelo.
Na mesa do outro lado estão os amigos dela, o “grupo dos 27”. Janis, Jim, Hendrix e Curt que, depois dos aplausos, a ajuda a descer.
- Boa noite, damas! – Jota senta-se ao nosso lado. Ele veste um manto branco que lhe chega até às (mesmas) sandálias franciscanas, e seu cabelo já passa dos ombros. – Vai cantar hoje?
-Claro, querido. – Respondo.
- Conseguiu falar com o carinha que eu te falei? – Pergunta Karen.
- Sim. Fui vê-lo tocar semana passada e ainda não tenho certeza se ele é um dos nossos, mas tenho fé. Ele tem só vinte e quatro anos, mas seria perfeito para ficar no meu lugar. O cantor favorito dele é o Nelson Gonçalves, que morreu com...
- 79. Eu sei.
A principal regra desse clube é que não importa quantos anos você tenha - ao chegar na idade exata em que seu ídolo morreu, você tem que se matar. Ou melhor dizendo, você tem que morrer da mesma forma que ele.

A palavra é realização. Um comprometimento que de alguma forma preenche um vazio dentro de você que nenhuma outra coisa consegue. Uma meta, uma missão. Um sentido. Você passa a viver pensando pura e exclusivamente na roupa que irá usar no próximo encontro; você pesquisa, lê biografias, vê filmes e vídeos na internet; decora entrevistas, estuda o modo de falar, os trejeitos; você come o que eles comiam, usa Chanel Nº5 para dormir (apenas duas gotas) e toma barbitúricos; você termina o dia com a sensação de ter feito algo que realmente importa e vale a pena, e dorme tranquila, sonhando que está cantando para as tropas americanas na Coréia - isso se seu ídolo não sofrer de insônia.
Olha o Elvis ali, saindo do banheiro. Ele ainda não morreu. Aquele cara deve ter uns trinta anos; ainda lhe faltam uns doze para ser encontrado morto por um ataque cardíaco em sua casa. E se você o visse por aí, em seu local de trabalho ou na rua, jamais imaginaria a satisfação que lhe preenche o peito. Você nos vê empacotando suas compras ou rasgando seu ingresso na entrada do cinema, cabisbaixos; falando sozinhos no ônibus; chegando em casa depois de trabalhar em um emprego medíocre, com um saco de ração de gatos e uma garrafa de vinho; você nos ouve no telefone, tentando vender uma apólice de seguros ou um consórcio de automóveis; você nos dá gorjetas ao entrar e sair dos hotéis e dos táxis, ou ainda nos joga uma moeda na rua, enquanto ensaiamos algum número para a apresentação da noite – não importa, as possibilidades são imensas. Talvez você até trabalhe para o Chico Xavier ou seja inquilino da Clarice Lispector, mas jamais saberá.
Aqui não precisamos ser nós mesmos ou o que a sociedade quer. Aqui, nós podemos ser quem a gente quiser.
Karen engole outra pílula.
Frank Sinatra termina seu número e desce do palco, ao som das palmas. Eu me olho no espelhinho de bolso uma última vez antes do meu nome ser anunciado.
Quando me levanto, Karen já está de pé, perto da porta. As coisas são assim por aqui, ninguém sabe o que vai acontecer amanhã, dia 03 de agosto. Para nós, ela está indo embora mais cedo por não estar se sentindo bem ou por ter um compromisso.
Sinto uma ponta de tristeza, não pelo o que vai acontecer, ou porque estou vendo pela última vez uma das poucas amigas de verdade que já tive na vida – mas porque amanhã nos jornais eu provavelmente vou descobrir quem ela realmente é.
Uma professora infantil.
Uma bancária.
Uma poetisa tímida demais para declamar seus textos.
Uma artista plástica.
Uma empregada.
Uma mãe.
Karen dá uma última olhada ao redor, acena para Jota e sai como sempre viveu – sorrindo e com os olhos grandes e melancólicos baixos.
Jota anuncia meu nome e eu respiro fundo. Há uma enorme cruz de madeira no fundo do palco e, de onde estou, vejo-o abrir os braços ao som dos aplausos e imagino por um segundo que ele já está crucificado, como estará daqui a seis anos nesse mesmo palco. Então eu caminho até o microfone, sorrindo. A luz do holofote me cega de início, mas tanto faz.
É a minha hora de brilhar.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Conto: Uma visita inesperada


Carolina desceu o caminho de pedras que levava da enorme casa de campo para a casinha de bonecas, que ficava nos fundos. Ela vinha nas pontas dos pés e com um braço erguido, como se segurasse com um cigarro. A berrante construção de madeira cor-de-rosa destacava-se dos tons de verde da floresta que circundava a propriedade e do lago, a alguns metros, com sua superfície acinzentada quase imaculada. A manhã estava nublada e fria.
- Mariana, minha querida! Você não imagina como estava o trânsito. – Falava a menina de forma afetada. Ao chegar na frente da casa, Carolina bateu na porta.
- Carol, mas que surpresa! – Recebeu a amiga, com um copo de Martini de plástico cheio de suco. Ela arrumou os cachos loiros com a outra mão e convidou a visita para entrar.
Carolina tinha seis anos e Mariana, cinco.
A menina cumprimentou a anfitriã com um beijo em casa bochecha, retirou a bolsa de lantejoulas e a pôs em uma estante abarrotada de ursinhos e brinquedos.
- Meus pais mandaram um beijo. Eles estão lá em cima com... – Ao se virar, Carolina se deparou com uma visão inusitada, sentada na mesinha de plástico lilás. Por um segundo ela não soube o que pensar, voltando à suas feições e características infantis. Era o tipo de pessoa que ela não esperava encontrar em um “evento desse nível” (como falava sua mãe), e muito menos a sós com a amiga. Ela a estudou com cautela, tomando cuidado para não demonstrar a surpresa e a decepção – que estavam estampadas em seus olhos grandes e azuis. Ela esperava encontrar outras primas e colegas de sua melhor amiga, mas nunca um...
- Oi. _disse o menino sorridente.
- Ah, esse é o meu novo amigo. Essa é a Carol.
- Oi. – A menina sentou-se do outro lado da mesa, e ficou observando o lago, pela janelinha. A música abafada da casa de campo chegava até eles de vez em quando, trazida pelo vento. Ela lançava olhares nervosos para a amiga, que colocava bolachas e canapés em pratinhos roxos (combinando com seu avental cheio de pôneis) e mexia nas panelas de brinquedo, e para o menino – que lhe parecia um tanto... Diferente.
Uma fina neblina pairava sobre o lago, desfazendo-se à medida que o sol saía por detrás das pesadas nuvens. A superfície da água parecia fundir-se com o vapor e o céu cinza, no horizonte.
Carolina tirou as luvas (roxas) e o cachecol xadrez, e reparou na blusa longa e escura que o menino usava, de um tecido grosso e rústico (pobre). A gola lhe tampava o pescoço e quase alcançava seu queixo, e um gorro preto.
-Tá com frio? -Perguntou a garota.
O menino balançou a cabeça, com o mesmo sorriso líneo.
-Tendi. Ãhm... Seus pais também estão na festa do tio e da tia?
-Não. Eu moro aqui perto, e daí resolvi vim brincar com vocês.
Sozinho? Pensou Carolina, mas sua amiga já vinha do outro lado da pequena cabana, com os petiscos.
-Não é legal? Eu queria morar aqui também! E não ter que voltar pra cidade, pra escola...
-Ah, escola é uma droga! – comentou o menino, com a voz baixa, ao que as duas concordaram e riram.
-Ele tava me falando que morar por aqui é muito legal! Que ele e os amigos dele brincam o dia todo na floresta! – Os olhos da menina cintilavam. – Meus pais nunca me deixam ir na floresta, né Carol?...
-Ai, eu ia morrer de medo! – disse Carolina, rindo.
-Que nada, é super legal!
-Mari, olha o meu novo celular. – Carolina retirou o IPhone do bolso. Ele é cheio de joguinhos, tem internet...
-Eu pedi um desses pra minha mãe, mas ela disse que eu sou muito nova pra ele, af! Você tem iPhone?
-Um o que? –perguntou o menino, observando o celular sobre a mesa. Ele olhava desconfiado para o aparelho. -Ah, não, é meus pais também não me deixam ter um, af!
Carolina notou o tom o desconforto do garoto, e tinha quase certeza que era a primeira vez que ele dizia aquela gíria. Seu tom não era natural; era forçado, descabido – aliás, como o próprio menino, que não parecia se encaixar naquela situação. Meninos... af!I Pensou a garota.
-Como você se_
-E aí, a gente vai brincar de quê? – o menino interrompeu Carolina, olhando ao redor da cabana.
-De casinha, ué! Olha a comidinha!
-Ah, não isso é coisa de menina! Vamos brincar de esconde-esconde, lá fora!
-Minha mãe não deixa, eu só posso ficar aqui.
-Nem a minha. – completou Carolina, desapontada.
-Ah, tá bom, vai! – disse o menino, rindo.
Mariana então se sentou, e as duas atacaram a comida.

-Coloca mais suco pra gente? E coloca mais açúcar, que ele ainda está amargo, bléh! – Pediu Mariana, fazendo uma careta. Ela foi até o fogão e pegou o smartphone. Vou pedir pra minha mãe trazer refri.
O menino descruzou os braços e despejou o suco de uva nos copos. Para o espanto de Carolina, as pequeninas mãos dele eram curvas e enrugadas, com pelos negros sobre os dedos e unhas amareladas. Ele então tirou um saquinho de pano do bolso e colocou um pó branco nas duas taças, e as empurrou na direção das garotas. Carolina olhou assustada para a amiga, que dava um imenso bocejo.
-Ai, sem sinal! – E coçou os olhos.
Mariana voltou para seu lugar e pôs-se a tagarelar sobre as aulas de balé, as amiguinhas da escola, sobre as roupas que comprara e do cachorro que os pais estavam enrolando para lhe dar, enquanto bebericava o suco. O menino ria baixinho, e concordava com a cabeça. Carolina, porém, ficava cada vez mais tensa à medida que uma sensação ruim crescia dentro de si. Ela não parava de mexer nos cabelos pretos e longos, e sua respiração acelerava-se a cada gole da amiga – que não percebia que estava começando a falar engraçado. Será que a tia sabe que ele está aqui com a gente? O coração dela disparou, e a garota precisou segurar a vontade de chorar.
-Não vai beber o suco, Carol? Agora tá docinho. – comentou Mariana.
-É, Carol, bebe. – disse o menino, cujo sorriso desaparecera, deixando no lugar um rosto magro e sulcado, esboçando o extremo oposto de sua voz suave. Os vincos que se formaram dos lados da boca chamaram a atenção da garota, mas não mais que seus olhos – negros e redondos, quase negros, com um brilho vítreo. Carolina então desviou o olhar.
-Eu vou lá pra cima, Mari.
- Ah, espera! Tem o bolo. – Ao levantar-se, Mariana deu dois passos trôpegos, tentou se segurar em uma cadeira, mas acabou desmaiando.
-Mari! –Carolina ergueu-se com a voz embargada pelo medo, mas ele fora mais rápido. Com o movimento, do bolso de seu casaco caiu um cachimbo de madeira.
Ao ver Carolina acuada em um canto, arfando e com as expressões deformadas anunciando o choro, o menino sorriu, mostrando os dentes podres.
-Se eu fosse você, ficaria bem quietinha.
Quando ele se abaixou para pegar o cachimbo, seu gorro enroscou em um gancho para casacos – revelando uma lustrosa careca e um par de orelhas longas e pontiagudas.
Carolina começou a chorar e a dizer coisas ininteligíveis, mas algumas frases se formaram corretamente entre seus soluços.
-Deixa a gente em paz... Eu quero a minha mãe... MÃE! – o grito finalmente irrompeu de sua garganta.
Ele pulou o corpo de Mariana e agarrou o pescoço da menina com os dedos grossos e ásperos. Seu hálito era forte e pútrido, quente.
-Se não quiser que eu te visite todas as noites, mocinha, é melhor não contar isso para ninguém. Porque eu vou ficar sabendo. Eu vou. Você não imagina como as notícias voam nessa floresta...
Petrificada, a menina já não tinha certeza do que estava acontecendo. Muda, trêmula e sentindo uma estranha calma se apoderar de suas entranhas, Carolina sentiu o coração desacelerar conforme assistia a cena que se desenvolvia diante de seus olhos brilhantes e arregalados, ainda que sem vida, como os de uma boneca.
Ele tinha as pernas curtas arqueadas para os lados, o que fazia com que balançasse o corpo ao andar. Ao levantar o corpo de Mariana em seus braços, ele cheirou o pescoço da menina, esfregando o rosto no dela, e abriu a porta. Pela janelinha, Carolina viu o diminuto homem correr em direção à mata e perder-se na escuridão.

-Oi meninas! Vim ver como se vocês precisam de alguma coisa. – A mãe de Mariana descia o caminho de pedras com um copo de Martini na mão. – Carol, fofa, o que foi?
Carolina estava sentada em um balanço, quietinha, olhando fixamente para a floresta.
Preocupada, a mulher entrou na casinha, para então sair de novo aos gritos.
-Cadê a Mariana!?
Um vento gélido veio de dentro da floresta, uivando. Uma rajada forte, viva e pulsante, fazendo os galhos daquelas árvores centenárias balançarem e suas copas farfalharem, como se falassem, com cuidado para não perturbarem o silêncio quase palpável.
Como se cochichassem.
E em silêncio, Carolina deu impulso com os pés. E balançou também.